Discurso Lula:
Compromisso com a mudança
28/10/2002
- Opinión
Ontem, o Brasil votou para mudar. A esperança venceu o medo e o
eleitorado decidiu por um novo caminho para o país. Foi um belo
espetáculo democrático que demos ao mundo. Um dos maiores povos
do planeta resolveu, de modo pacífico e tranqüilo, traçar um rumo
diferente para si.
As eleições que acabamos de realizar foram, acima de tudo, uma
vitória da sociedade brasileira e de suas instituições
democráticas, uma vez que elas trouxeram a alternância no poder,
sem a qual a democracia perde a sua essência.
Tivemos um processo eleitoral de excelente qualidade, no qual os
cidadãos e as cidadãs exigiram e obtiveram um debate limpo,
franco e qualificado sobre os desafios imediatos e históricos do
nosso país. Contribuíram para isso a atitude da justiça eleitoral
e do presidente da República, que cumpriram de maneira
equilibrada o seu papel constitucional.
A grande virtude da democracia é que ela permite ao povo mudar de
horizonte quando ele acha necessário. A nossa vitória significa a
escolha de um projeto alternativo e o início de um novo ciclo
histórico para o Brasil.
A nossa chegada à Presidência da República é fruto de um vasto
esforço coletivo, realizado, ao longo de décadas, por inúmeros
democratas e lutadores sociais. Muitos dos quais, infelizmente,
não puderam ver a sociedade brasileira, e em especial as camadas
oprimidas, colherem os frutos de seu árduo trabalho, de sua
dedicação e sacrifício militante.
Estejam onde estiverem, os companheiros e as companheiras que a
morte colheu antes desta hora, saibam que somos herdeiros e
portadores do seu legado de dignidade humana, de integridade
pessoal, de amor pelo Brasil, e de paixão pela justiça. Saibam
que a obra de vocês segue conosco, como se vivos estivessem, e é
fonte de inspiração para nós que seguimos travando o bom combate.
O combate em favor dos excluídos e dos discriminados. O combate
em favor dos desamparados, dos humilhados e dos ofendidos.
Quero homenagear aqui os militantes anônimos. Aqueles que deram
seu trabalho e dedicação, ao longo de todos esses anos, para que
chegássemos aonde chegamos. Nas mais longínquas regiões do país,
eles jamais esmoreceram. Aprenderam, como eu, com as derrotas.
Tornaram-se mais competentes e eficazes na defesa de um país
soberano e justo.
Celebro hoje aqueles que, nos momentos difíceis do passado,
quando a nossa causa de um país justo e solidário parecia
inviável, não caíram na tentação da indiferença, não cederam ao
egoísmo e ao individualismo exacerbado. Todos aqueles que
conservaram intacta a sua capacidade de indignar-se perante o
sofrimento alheio. Souberam resistir, mantendo acesa a chama da
solidariedade social. Todos aqueles que não desertaram do nosso
sonho, que às vezes sozinhos nas praças deste imenso Brasil
ergueram bem alto a bandeira estrelada da esperança.
Mas esta vitória é, sobretudo, de milhares, quem sabe milhões, de
pessoas sem filiação partidária que se engajaram nessa causa. É
uma conquista das classes populares, das classes médias, de
parcelas importantes do empresariado, dos movimentos sociais e
das entidades sindicais que compreenderam a necessidade de
combater a pobreza e defender o interesse nacional.
Para alcançar o resultado de ontem, foi fundamental que o PT, um
partido de esquerda, tenha sabido construir uma ampla aliança com
outras forças partidárias. O PL, o PC do B, o PMN e o PCB deram
uma contribuição inestimável desde o primeiro turno. A eles,
vieram somar-se, no segundo turno, o PSB, o PPS, o PDT, o PV, o
PTB, o PHS, o PSDC e o PGT. Além disso, ao longo da campanha,
contamos com o apoio de setores importantes de outros partidos
identificados com o nosso programa de mudanças para o Brasil. Em
especial, quero destacar o apoio dos ex-presidentes José Sarney e
Itamar Franco e, no segundo turno, o precioso apoio que recebi de
Anthony Garotinho e Ciro Gomes.
Não há dúvida de que a maioria da sociedade votou pela adoção de
outro ideal de país, em que todos tenham os seus direitos básicos
assegurados. A maioria da sociedade brasileira votou pela adoção
de outro modelo econômico e social, capaz de assegurar a retomada
do crescimento, do desenvolvimento econômico com geração de
emprego e distribuição de renda.
O povo brasileiro sabe, entretanto, que aquilo que se desfez ou
se deixou de fazer na última década não pode ser resolvido num
passe de mágica. Assim como carências históricas da população
trabalhadora não podem ser superadas da noite para o dia. Não há
solução milagrosa para tamanha dívida social, agravada no último
período. Mas é possível e necessário começar, desde o primeiro
dia de governo.
Vamos enfrentar a atual vulnerabilidade externa da economia
brasileira - fator crucial na turbulência financeira dos últimos
meses - de forma segura. Como dissemos na campanha, nosso governo
vai honrar os contratos estabelecidos pelo governo, não vai
descuidar do controle da inflação e manterá - como sempre ocorreu
nos governos do PT - uma postura de responsabilidade fiscal. Essa
é a razão para dizer com clareza a todos os brasileiros: a dura
travessia que o Brasil estará enfrentando exigirá austeridade no
uso do dinheiro público e combate implacável à corrupção.
Mas mesmo com as restrições orçamentárias, impostas pela difícil
situação financeira que vamos herdar, estamos convencidos que,
desde o primeiro dia da nova gestão, é possível agir com
criatividade e determinação na área social. Vamos aplacar a fome,
gerar empregos, atacar o crime, combater a corrupção e criar
melhores condições de estudo para a população de baixa renda
desde o momento inicial de meu governo.
Meu primeiro ano de mandato terá o selo do combate à fome. Um
apelo à solidariedade para com os brasileiros que não têm o que
comer. Para tanto, anuncio a criação de uma Secretaria de
Emergência Social, com verbas e poderes para iniciar, já em
janeiro, o combate ao flagelo da fome. Estou seguro de que esse
é, hoje, o clamor mais forte do conjunto da sociedade. Se ao
final do meu mandato, cada brasileiro puder se alimentar três
vezes ao dia, terei realizado a missão de minha vida.
Como disse ao lançar meu Programa de Governo, gerar empregos será
minha obsessão. Para tanto, vamos mobilizar imediatamente os
recursos públicos disponíveis nos bancos oficiais - e nas
parcerias com a iniciativa privada - para a ativação do setor da
construção civil e das obras de saneamento. Além de gerar
empregos, tal medida ajudará à retomada gradual do crescimento
sustentado.
O país tem acompanhado com preocupação a crise financeira
internacional e suas implicações na situação brasileira. Em
especial, a instabilidade na taxa de câmbio e a pressão
inflacionária dela decorrente.
Porém, com toda a adversidade internacional, estamos com
superávit comercial de mais de 10 bilhões de dólares neste ano.
Resultado que pode ser ampliado já em 2003 com uma política
ofensiva de exportações, incorporando mais valor agregado aos
nossos produtos, aprofundando a competitividade da nossa
economia, bem como promovendo uma criteriosa política de
substituição competitiva de importações.
O Brasil fará a sua parte para superar a crise, mas é essencial
que além do apoio de organismos multilaterais, como o FMI, o BID
e o BIRD, se restabeleçam as linhas de financiamento para as
empresas e para o comércio internacional. Igualmente relevante é
avançar nas negociações comerciais internacionais, nas quais os
países ricos efetivamente retirem as barreiras protecionistas e
os subsídios que penalizam as nossas exportações, principalmente
na agricultura.
Nos últimos três anos, com o fim da âncora cambial, aumentamos em
mais de 20 milhões de toneladas a nossa safra agrícola. Temos
imenso potencial nesse setor para desencadear um amplo programa
de combate à fome e exportarmos alimentos que continuam
encontrando no protecionismo injusto das grandes potências
econômicas um obstáculo que não pouparemos esforços para remover.
O trabalho é o caminho de nosso desenvolvimento, da superação
dessa herança histórica de desigualdade e exclusão social.
Queremos constituir um amplo mercado de consumo de massas que dê
segurança aos investimentos das empresas, atraia investimentos
produtivos internacionais e represente um novo modelo de
desenvolvimento e compatibilize distribuição de renda e
crescimento econômico.
A construção dessa nova perspectiva de crescimento sustentado e
de geração de emprego exigirá a ampliação e o barateamento do
crédito, o fomento ao mercado de capitais e um cuidadoso
investimento em ciência e tecnologia. Exigirá também uma inversão
de prioridades no financiamento e no gasto público, valorizando a
agricultura familiar, o cooperativismo, as micro e pequenas
empresas e as diversas formas de economia solidária.
O Congresso Nacional tem uma imensa responsabilidade na
construção dessas mudanças que irão promover a inclusão social e
o crescimento sustentado. Por isso, estarei pessoalmente
empenhado em encaminhar para o Congresso as grandes reformas que
a sociedade reclama: a reforma da previdência social, a reforma
tributária, a reforma da legislação trabalhista e da estrutura
sindical, a reforma agrária e a reforma política.
O mundo está atento a esta demonstração espetacular de democracia
e participação popular ocorrida na eleição de ontem. É uma boa
hora para reafirmar um compromisso de defesa corajosa de nossa
soberania nacional. E o faremos buscando construir uma cultura de
paz entre as nações, aprofundando a integração econômica e
comercial entre os países, resgatando e ampliando o Mercosul como
instrumento de integração regional e implementando uma negociação
soberana frente à proposta da ALCA. Vamos fomentar os acordos
comerciais bilaterais e lutar para que uma nova ordem econômica
internacional diminua as injustiças, a distância crescente entre
países ricos e pobres, bem como a instabilidade financeira
internacional que tantos prejuízos tem imposto aos países em
desenvolvimento.
Nosso governo será um guardião da Amazônia e da sua
biodiversidade. Nosso programa de desenvolvimento, em especial
para essa região, será marcada pela responsabilidade ambiental.
Queremos impulsionar todas as formas de integração da América
Latina que fortaleçam a nossa identidade histórica, social e
cultural. Particularmente relevante é buscar parcerias que
permitam um combate implacável ao narcotráfico que alicia uma
parte da juventude e alimenta o crime organizado.
Nosso governo respeitará e procurará fortalecer os organismos
internacionais, em particular a ONU e os acordos internacionais
relevantes, como o protocolo de Kyoto, e o Tribunal Penal
Internacional, bem como os acordos de não proliferação de armas
nucleares e químicas. Estimularemos a idéia de uma globalização
solidária e humanista, na qual os povos dos países pobres possam
reverter essa estrutura internacional injusta e excludente.
Não vou decepcionar o povo brasileiro. A manifestação que brotou
ontem do fundo da alma dos meus compatriotas será a minha a
inspiração e a minha bússola. Serei, a partir de 1º de janeiro, o
presidente de todos os brasileiros e brasileiras, porque sei que
é isso que esperam os eleitores que me confiaram o seu voto.
Vivemos um momento decisivo e único para as mudanças que todos
desejamos. Elas virão sem surpresas e sobressaltos. Meu governo
terá a marca do entendimento e da negociação. Da firmeza e da
paciência. Temos plena consciência que a grandeza dessa tarefa
supera os limites de um partido. Esse foi o sentido do esforço
que fizemos desde a campanha para reunir sindicalistas, ONGs e
empresários de todos os segmentos numa ação comum pelo país.
Continuaremos a ter atuação decidida no sentido de unir as
diversas forças políticas e sociais para construir uma nação que
beneficie o conjunto do povo. Vamos promover um Pacto Nacional
pelo Brasil, formalizar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social, e escolher os melhores quadros do Brasil para fazer parte
de um governo amplo, que permita iniciar o resgate das dívidas
sociais seculares. Isso não se fará sem a ativa participação de
todas as forças vivas do Brasil, trabalhadores e empresários,
homens e mulheres de bem.
Meu coração bate forte. Sei que estou sintonizado com a esperança
de milhões e milhões de outros corações. Estou otimista. Sinto
que um novo Brasil está nascendo.
São Paulo, 28 de outubro de 2002
* Luiz Inácio Lula da Silva Presidente eleito da República
Federativa do Brasil
https://www.alainet.org/es/articulo/106567
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