Deve o Brasil se retirar da Alca?
30/10/2002
- Opinión
1. Os defensores da participação do Brasil nas negociações para a formação de
uma Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA, ficam especialmente
preocupados e irritados com a possibilidade de o Brasil vir a se retirar dessas
negociações. Apresentam, em seu entusiasmo pan-americanista, argumentos
diversos para que o Brasil permaneça nas negociações, os quais merecem análise
e resposta.
2. O primeiro desses argumentos é de que ainda não se sabe o formato final dos
compromissos da ALCA e que, portanto, é necessário negociar para criar uma ALCA
favorável ao Brasil. Este argumento é parente próximo, mas certamente não igual
àquele que afirma "Outra ALCA é possível'".
3. Sabemos, com absoluta certeza, que a ALCA será um esquema de integração
muito mais amplo e complexo do que um acordo tradicional de livre comércio,
pois incluirá normas que determinarão não apenas o livre comércio de bens e de
serviços, mas também a desregulamentação total dos investimentos estrangeiros;
o livre acesso a compras governamentais; o tratamento mais favorável às
empresas detentoras de patentes; a defesa comercial e, finalmente, regras
privilegiadas sobre a solução de controvérsias entre Estado e investidor
estrangeiro.
4. Ora, 88% do PIB total das Américas corresponde ao conjunto dos países do
NAFTA. Certamente, os três países que compõem o NAFTA, Estados Unidos, Canadá e
México, não modificarão substancialmente as regras tão arduamente negociadas e
aprovadas de sua área de livre comércio para satisfazer e incorporar a ela os
demais 31 países que representam em conjunto 12% apenas do PIB do Continente, a
esmagadora maioria deles em profunda crise social, econômica e política e,
portanto, com reduzido poder para influir, em seu favor, sobre as negociações.
A ALCA será o NAFTA ampliado, conforme prevê, de certa forma, seu artigo 2204,
e talvez com regras ainda mais favoráveis aos Estados Unidos, o que eles chamam
de NAFTA–plus.
5. Os defensores da continuidade das negociações da ALCA argumentam que, se o
Brasil delas não participar, ficará isolado dos países latino-americanos, dos
Estados Unidos e do Canadá, o que acarretaria graves prejuízos econômicos, pois
70% do nosso comércio exterior se faz com esses países, podendo inclusive
sujeitar o Brasil a retaliações americanas.
6. Ora, inicialmente, se o Brasil deseja preservar e expandir de forma
verdadeira e consistente suas relações econômicas e políticas com seus vizinhos
sul-americanos (e mesmo com os países centro-americanos), poderá ampliar
vigorosamente os acordos que com esses países mantêm no âmbito da ALADI e
assim, ao invés de se isolar, o Brasil se aproximará deles, de imediato.
7. Há dois contra-argumentos que se apresentam a esta idéia. O primeiro afirma
que somente se poderia negociar tal ampliação de acordos em conjunto com os
demais parceiros do Mercosul, devido à existência da Tarifa Externa Comum, a
TEC, o que seria difícil, pois os parceiros do Mercosul resistem à abertura do
mercado brasileiro, pois não desejam sofrer nele a concorrência de empresas de
outros países latinos. O segundo contra-argumento é de que a abertura do
mercado brasileiro, através de acordos tipo ALADI, prejudicaria nossas
empresas, que enfrentariam nova concorrência.
8. Os dois contra-argumentos são frágeis. A TEC hoje em dia é uma verdadeira
"peneira", tal o número de "perfurações", i.e. de exceções à tarifa comum.
Segundo, é necessário superar a situação atual em que o "rabo (Argentina,
Uruguai e Paraguai) abana o cachorro (Brasil)", sem qualquer proveito maior
para o cachorro. Hoje, a política comercial (e a política econômica em geral)
brasileira é refém dos interesses argentinos, uruguaios e paraguaios (que são
distintos dos brasileiros), sem maior vantagem para o país, pois o poder
negociador do Brasil não se ampliou com a aliança com parceiros que não perdem
ocasião para confrontar as posições brasileiras em todos os foros, como ocorreu
com a Argentina em todo o seu longo período de "relações carnais" com os
Estados Unidos. É necessário reorientar a política econômica externa em torno
da meta estratégica central de criar um bloco sul-americano a partir da
abertura controlada, sem exigir reciprocidade, do mercado brasileiro às
exportações dos vizinhos sul-americanos. Acordos semelhantes aos da ALADI podem
ser negociados com os países centro-americanos ainda que tenham eles mercados
insignificantes que diferença nenhuma fariam, abertos ou fechados, para as
exportações brasileiras.
9. O segundo contra-argumento é, para dizer o mínimo, curioso. Temem as
empresas brasileiras a concorrência das modestas empresas sul-americanas, mas
não temem a concorrência devastadora das megaempresas multinacionais
americanas, as maiores e mais dinâmicas do mundo, que decorreria de nossa
participação na ALCA. Segundo, não faz sentido esse contra-argumento porque os
acordos tipo ALADI podem ser negociados de forma muito mais controlada
incluindo a fixação de quotas etc. Aqueles que tanto desejam a ALCA deveriam
aceitar a idéia de integrar o mercado sul-americano e assim testar a capacidade
competitiva de nossas empresas antes de partir para vôos temerários e fadados à
catástrofe sem volta.
10. A abertura gradual e controlada, sem exigir reciprocidade, para as
exportações de bens efetivamente produzidos (confirmada a produção por
certificados de origem e fiscalização) nos países sul-americanos seria o
instrumento estratégico político essencial para acelerar a formação de um bloco
sul-americano. É tal a assimetria econômica e tecnológica entre o Brasil e seus
vizinhos que a negociação comercial e econômica, com exigência de
reciprocidade, esbarra na sua pequena diversidade produtiva e da pauta de
exportações.
11. A não participação do Brasil nas negociações da ALCA e a eventual
celebração de uma "ALCA sem o Brasil" ou de acordos de livre comércio
bilaterais entre os Estados Unidos e cada um ou alguns dos demais países
latino-americanos não deve assustar o Brasil, em termos da qualidade de nossas
relações econômicas com os Estados Unidos, ou de nossa posição no mercado
daqueles países latino-americanos. O fato, por exemplo, de o México ter
integrado o NAFTA a partir de 1994 não reduziu as exportações brasileiras para
lá, as quais, aliás, aumentaram. Poderia o Brasil celebrar com cada um desses
países um acordo de livre comércio com as mesmas condições alcançadas pelos
Estados Unidos e assim preservar nossa posição competitiva.
12. Segundo, são de tal forma variados e importantes os vínculos e os
interesses americanos no Brasil, ocasião e lugar para importantes oportunidades
de investimento e de lucros muito significativos para suas megaempresas, que
não teriam os Estados Unidos jamais interesse em "sancionar" o Brasil por não
desejar participar de uma ALCA, nem o direito de fazê-lo porque não há nenhuma
norma de direito internacional que obrigue um país a negociar ou a participar
de um esquema de integração econômica com qualquer país, norma em que pudessem
os Estados Unidos se apoiar. Qualquer medida retaliatória americana seria
facilmente derrotada na OMC onde teríamos o apoio de todos os países membros,
tal sua ilegalidade e arbítrio. Nossas relações com os Estados Unidos podem ser
bem conduzidas bilateralmente, através de negociações diretas bilaterais para
reduzir obstáculos específicos ao comércio ou multilateralmente no âmbito da
OMC, onde a posição negociadora brasileira é muito mais forte do que no âmbito
da ALCA, devido aos interesses e ao peso político de outros países-membros com
os quais poderíamos nos aliar.
13. Outro argumento dos defensores da ALCA é de que as negociações da ALCA
seriam a única possibilidade de abrir o mercado dos Estados Unidos para as
exportações brasileiras, em especial para as exportações agropecuárias, que
seriam altamente competitivas.
14. Este argumento é igualmente frágil, por três motivos. Primeiro, é possível
abrir o mercado americano, de forma adequada, para os produtos que nos
interessam através de negociações bilaterais ou no âmbito das negociações da
OMC. Muitos dos produtos brasileiros já entram livres de direitos nos Estados
Unidos, inclusive devido ao interesse americano (como no caso de produtos
primários como o café) e segundo, não nos interessa obter livre acesso
permanente para todos os produtos da pauta, pois muitos deles simplesmente não
fabricamos. Os obstáculos que enfrentam nossos exportadores são localizados,
específicos, agravados pela legislação de defesa comercial americana, que,
aliás, a lei de Trade Promotion Authority (TPA) determinou que não pode ser
objeto de negociação. No caso dos produtos da agropecuária, os interesses da
agricultura americana, sua representação política no Congresso, as difíceis
relações comerciais agrícolas dos Estados Unidos com a União Européia e as
recentes leis americanas que mantiveram e ampliaram os subsídios à agricultura
e o TPA, que dificulta ou impede as negociações de numerosos produtos de
interesse brasileiro, como o açúcar e o tabaco, indicam claramente que a ALCA
não é nem pode ser a estratégia adequada para a expansão do comércio exterior
brasileiro.
15. Outro argumento dos defensores da participação brasileira nas negociações
da ALCA é que a ALCA seria, em ultima análise, poderoso instrumento de
desenvolvimento da economia brasileira e para provar o argumento citam o
exemplo do México.
16. Alegam ter a economia mexicana superado a brasileira em dimensão como
resultado do NAFTA. Em realidade, a economia brasileira continua maior do que a
mexicana, medido o PIB pelo método do poder de compra equivalente, segundo os
critérios do Banco Mundial. O fato é que o peso mexicano está sobrevalorizado e
o próprio Secretário de Finanças do México alertou para a severa crise que se
avizinha, caso esta situação permaneça por mais tempo.
17. A economia mexicana é hoje dependente do mercado americano para cerca de
90% das suas exportações e 80% de suas importações e, portanto, seu crescimento
depende do crescimento americano. Tornou-se uma economia dependente de um só
país quando o ideal para a estabilidade econômica do processo de
desenvolvimento é a diversificação de fornecedores e de compradores externos de
um país e de sua pauta de exportação.
18. A concentração de renda e de riqueza se agravou no México, o salário médio
real do trabalhador caiu desde 1994, a questão social é gravíssima, segundo
declarações do próprio Presidente Fox e a economia se desnacionalizou e
regrediu industrialmente. Agora, para culminar, as industrias maquiladoras
abandonam o México em direção à Ásia. Nos últimos doze meses, o México perdeu
25% das empresas "maquiladoras" e 500 mil empregos dos 1,2 milhões que teriam
sido gerados pelo NAFTA. É em extremo remota a possibilidade de o México ter
êxito em obter melhores condições de imigração de seus trabalhadores para o
mercado americano, após o enrijecimento recente da legislação de imigração dos
Estados Unidos. Para finalizar, o México tem 3.000 km de fronteiras com os
Estados Unidos, há grande número de imigrantes mexicanos nos Estados Unidos que
remetem divisas para seu país, há um amplo fluxo turístico com os Estados
Unidos, a mão-de-obra mexicana e barata, conjunto de circunstâncias que o
Brasil não têm e em relação às quais não pode competir com o México.
19. A natureza dos três desafios que a sociedade brasileira tem de enfrentar
com a maior urgência e eficiência, que são reduzir com firmeza as disparidades
sociais e regionais; eliminar as crônicas vulnerabilidades externas e realizar
o potencial brasileiro, exigem políticas ativas do Estado na área comercial,
industrial, de emprego, de tecnologia, de orientação do capital estrangeiro, de
desempenho dos detentores de patentes, de promoção agressiva das exportações e
de substituição de importações, políticas que a ALCA impedirá. Uma estratégia
de desenvolvimento eficaz para o Brasil, um verdadeiro projeto nacional baseado
nas necessidades da sociedade e não nos desejos das empresas multinacionais e
de seus Estados de origem, somente é possível se o Brasil não participar da
ALCA. E, portanto, não há porque continuar a participar das negociações, cujo
resultado será necessariamente adverso.
20. "A não participação do Brasil na ALCA dificultará (ou impedirá) o apoio
financeiro dos Estados Unidos em caso de crise externa (i.e. de moratória ou
default)". Quiçá seja este o argumento econômico final dos defensores da ALCA
e, para demonstrá-lo, lembram o apoio que os EUA deram ao México quando da
crise de pagamentos de 1994.
21. Ora, o fato de o Brasil integrar ou não uma área de livre comércio com os
Estados Unidos, no primeiro caso, não garante e, no segundo, não impede a ajuda
financeira que pudesse vir a obter (se os tempos fossem outros) dos Estados
Unidos ou do FMI, i.e. em realidade do Departamento do Tesouro americano, para
enfrentar uma crise financeira externa importante.
22. A atual política do FMI e do Governo americano para os países emergentes em
crise econômica externa (que rapidamente se transforma em crise interna) é não
fornecer fundos com o objetivo de evitar o "moral hazard" e, ao invés,
interferir cada vez mais diretamente na própria condução da política econômica,
como exemplifica o envio recente de uma equipe de "peritos" de alto nível
supostamente neutros para assessorar o Governo argentino na solução da crise e
em especial arbitrar o conflito entre Banco Central e o Ministério da Fazenda.
O objetivo monocórdio é sempre impor políticas de ajuste estrutural ainda mais
rigoroso que levam à explosão social. Os empréstimos feitos recentemente pelo
FMI ao Brasil (U$30 bilhões) e ao Uruguai são excepcionais e se verifica
claramente, quando se os compara com a política do FMI em relação à Argentina,
terem como objetivo permitir a "saída" de investidores americanos, propósitos
eleitorais e de "lock in" do futuro Governo em relação à intervenção do FMI (e
dos Estados Unidos) na política brasileira.
23. O exemplo da catástrofe social, econômica e política argentina (e a própria
situação do Brasil) deveria ser um decisivo alerta para a sociedade e as elites
brasileiras sobre o destino cruel de países que fundamentam sua estratégia de
desenvolvimento em uma suposta disponibilidade excessiva, na realidade sempre
passageira, de capital internacional e na possibilidade de acesso aos mercados
dos países altamente desenvolvidos, em resumo, nos humores voláteis dos
especuladores, na estratégia global das megaempresas multinacionais e na crença
ingênua do fim do protecionismo das Grandes Potências.
24. Assim, participar da ALCA (e, portanto, das negociações que levarão a ela)
agravará a redução da soberania brasileira para reformular sua política
econômica e retirar o Brasil da beira do abismo em que a atual equipe econômica
o colocou, situação que, paradoxalmente, esta mesma equipe insiste em louvar e
perpetuar, e agravará ainda mais a debilidade estrutural das contas de
transações correntes do Brasil, dadas as assimetrias entre Brasil e Estados
Unidos, entre as empresas brasileiras e as megaempresas americanas.
25. Para encerrar, os defensores da participação do Brasil nas negociações da
ALCA argumentam que o Poder Executivo tem a competência para negociar tratados
internacionais, que os negociadores brasileiros são experientes, e que, em
último caso, o Congresso Nacional tem competência para rejeitar o eventual
tratado de formação da ALCA.
26. Se é verdade que a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a competência
para negociar tratados internacionais e que todo tratado implica certa
limitação de soberania, certamente a Constituição não atribui competência ao
Executivo para negociar tratados que firam de forma radical os princípios
fundamentais da República e os princípios que regem as relações internacionais
do Brasil. Como o resultado das negociações é inconstitucional, pois fere tais
princípios, assim também são, portanto, as negociações que a tal resultado
levam.
27. Que os negociadores são competentes e experientes, não há dúvida. Todavia,
deram a esses funcionários do Estado uma missão impossível que é a de negociar
um esquema de integração assimétrica radical entre a maior Potência do mundo e
um país subdesenvolvido, o Brasil, em grave crise, esquema que seja favorável a
este último e preserve sua soberania. Os negociadores são experientes, mas os
que formularam e impõem tal objetivo não o são, pois são os mesmos que
implementaram a política econômica e a política externa que levaram o Brasil à
situação atual de crise permanente, de subserviência diante das agências
internacionais, de desarticulação institucional, de corrupção em altas esferas,
de violência e marginalidade social.
28. O argumento de que o Congresso pode rejeitar o tratado de constituição da
ALCA é formalmente correto e politicamente absurdo. À medida em que se passam
os anos de negociação, o texto do acordo vai se cristalizando, o país vai
assumindo compromissos provisórios, o texto final é apresentado como sendo o
melhor possível e o Executivo, comprometido em sua palavra e sofrendo enorme
pressão externa, articula e desencadeia toda sua força política para fazer o
Congresso aprovar o texto final, com o argumento de que é preciso honrar a
"palavra do Brasil".
29. Por esta razão, todos os segmentos, setores, classes e organizações que
compõem a sociedade brasileira devem se mobilizar e solicitar ao Congresso
brasileiro que impeça a continuidade dessas negociações, pois elas levarão
inexoravelmente a um acordo que, de um lado impedirá o enfrentamento com êxito
dos grandes desafios sociais brasileiros e, por outro, reduzirá a soberania e
frustrará a possibilidade de o Brasil, realizando seu potencial, se tornar uma
potência tão importante como qualquer outra, como permitem seu território, seu
povo e o seu capital acumulado.
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