A CONEN e as eleições de 2002

01/10/2002
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No dia 22 de abril de 2000, a região de Porto Seguro, no extremo sul da Bahia, acordou sitiada. Milhares de soldados da Polícia Militar baiana, do Exército, Marinha e Aeronáutica controlavam toda a área: haviam barreiras nas estradas, grupos de centenas de soldados Acampados esperando ordens estavam em ônibus espalhados por toda parte, lanchas e helicópteros mostravam vigilância e Agressividade. Era o principal dia das comemorações oficiais dos 500 anos do chamado "descobrimento" do Brasil. Era o principal dia das atividades conjuntas do amplo movimento 500 anos de Resistência Indígena, Negra e Popular - Brasil: Outros 500.. Um, desejando fazer o elogio da colonização, de mãos dadas com a comitiva do governo de Portugal. O outro, querendo mostrar que os excluídos da História: negros, índios, trabalhadores urbanos e trabalhadores sem terra seguiam resistindo e lutando unidos, buscando a construção dos "outros 500". De repente, a violência policial-militar foi desatada contra os negros, estudantes e trabalhadores que seguiam pacificamente ao encontro com os índios que encerravam a Conferência Indígena. Logo após, a mesma violência volta redobrada contra a marcha, reunindo todos os setores sociais, que seguia para Porto Seguro. Resultado: centenas de presos e feridos, pânico generalizado, fim da manifestação pacífica e coletiva. As imagens da brutalidade policial - militar correram o mundo naquele 22 de abril e nos dias e semanas seguintes: um índio deitado no chão da estrada e policiais marchando sobre ele; um negro arrastado pelos cabelos; mais de uma centena de estudantes cercados por uma tropa armada até os dentes; policiais em uniforme camuflado e de combate apontando armas para a multidão; bombas de gás explodindo no meio do povo aterrorizado. Essas imagens estiveram nos principais meios de comunicação do Brasil, da América Latina, em Nova York, Paris, Londres, Genebra e testemunham ofensas aos direitos humanos em nosso país. Revelaram ao mundo a desigualdade e a injustiça que ainda temos no Brasil; o caráter violento das nossas elites; a política anti - popular e repressiva do Governo de Fernando Henrique Cardoso e seu candidato José Serra. Em um ano eleitoral eles procuram ocultar os fatos que comprovam que a nossa sociedade e o nosso Estado são ainda marcados pela opressão, pela exclusão social, pelo racismo, pela discriminação e pelo preconceito contra povos e culturas. Impactado pela repercussão dos acontecimentos de Porto Seguro, o governo de FHC se negou a sediar em nosso país a Conferência Regional das Américas para organização da participação dos países da América Latina na III Conferência Mundial contra o Racismo, que acabou sendo realizada no Chile, em dezembro de 2000. Percebendo o erro dessa decisão e pressionado pelo movimento negro brasileiro, o governo reverteu o distanciamento em relação a III Conferência passando a ter uma posição mais participativa em relação à mesma o que resultou numa presença mais ativa do governo em Durban, na África do Sul. Como conseqüência da mobilização do movimento negro brasileiro que liderou a mobilização latino-americana em todos os processos da III Conferência, o governo adota "nova postura" em relação ao racismo à brasileira, pós Durban, promovendo diversas ações afirmativas restritas principalmente às políticas de cotas que passam a ser colocadas em prática em órgãos federais governamentais como o Supremo Tribunal Federal, os Ministérios da Educação, da Justiça, da Cultura e do Desenvolvimento Agrário. Estas ações são acompanhadas por proposições do mesmo tipo em alguns governos nos Estados e Municípios, no Legislativo na esfera federal, estadual e municipal e em algumas universidades públicas. No dia 13 de Maio de 2002 o governo federal institui o Programa Nacional de Ações Afirmativas, sob a coordenação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça. Mas, nesse mesmo dia, 13 de Maio de 2002, na contra - mão dessa "nova - postura", lembrando o FHC de 22 de abril de 2000, o Governo de Fernando Henrique Cardoso com a concordância do Ministério da Justiça e em comum acordo com a Fundação Cultural Palmares, o principal órgão de governo relacionado a superação do racismo no plano Federal, veta totalmente o Projeto de Lei 129/1995, de autoria da então Senadora Benedita da Silva, que regulamenta o direito de propriedade das terras de quilombos e o procedimento de sua titulação, na forma do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, alegando inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. O Presidente Fernando Henrique Cardoso ao vetar um projeto que atende o interesse público dos moradores de cerca de 1000 comunidades negras rurais quilombolas em praticamente todos os Estados do país, demonstra o seu descompromisso com as reivindicações mais significativas e abrangentes da população negra. O veto de FHC reforça a posição assumida publicamente pela CONEN de oposição a um governo que em seus oito anos pouco fez por uma grande parte da população de nosso país, a população negra. Ocupamos os setores em que as estatísticas demonstram o menor nível de escolaridade, os mais baixos rendimentos e o maior índice de desemprego. São dados que comprovam que o racismo é assim: uma ideologia que legitima a concentração de riqueza, a exclusão da maioria por meio da manutenção da injustiça social No Brasil este fator é ainda mais grave porque o país edificou um sistema capitalista sobre um sistema escravista. E é evidente que a ideologia racista, gestada no período da escravidão, passou a ser legitimadora da exclusão social e racial promovida pelo capitalismo e agora radicalizada pelo neoliberalismo implantado em nosso país durante os governos de Fernando Henrique Cardoso. Fernando Henrique Cardoso, em seus oito anos de governo, ao dar continuidade à aplicação do projeto neoliberal em nosso país, iniciado com o governo Collor, aprofundou as marcas sociais do racismo brasileiro. Cresceu o desemprego particularmente entre os negros, contribuindo para o desmantelamento do tecido social. Segundo os últimos dados oficiais, somente 33% da população economicamente ativa (ou seja, aqueles que trabalham ou buscam trabalho) têm carteira assinada. Passamos a ocupar o trabalho informal sem nenhuma garantia trabalhista. Um estudo feito pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas Sócio - Econômicas) por solicitação do INSPIR (Instituto Interamericano pela Igualdade Racial), dirigido pela CUT, CGT, Força Sindical, AFL-CIO e ORIT, o Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho no Brasil, mostrou que em cinco das seis regiões metropolitanas pesquisadas (Belo Horizonte, Distrito Federal, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo), os negros estão com os piores indicadores. Na Grande São Paulo, o rendimento mensal médio em 98 de um branco ocupado (emprego, trabalho informal, bicos esporádicos, etc.) foi o dobro de um negro. Um homem branco ganhou R$ 1.188,00. A mulher branca, R$ 750,00. O homem negro, R$ 601,00. E a mulher negra, R$ 399,00. O Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho mostra também que a taxa de desemprego é maior entre os chefes de famílias negros do que entre os brancos nas seis regiões metropolitanas pesquisadas. Em Salvador, a taxa de desemprego dos chefes de famílias negros é de 74,2% superior a dos brancos. A menor diferença está em Recife: 38,8%. O emprego doméstico concentra 19% da população feminina economicamente ativa e do total das trabalhadoras domésticas 56% são negras, sendo que 23% delas realizam jornadas superiores a 48 horas semanais. Segundo dados da OIT, entre atos trabalhadores doméstico/as no Brasil estão cerca de 500 mil crianças e adolescentes, em sua maioria do sexo feminino e mais da metade delas negras. Desse total, cerca de 64% recebem menos de meio salário mínimo. No campo, as comunidades negras rurais estão lutando para garantir seus direitos constitucionais de propriedade da terra onde vivem há longos anos. Em Alcântara, no Maranhão, o acordo do governo do Brasil com os Estados Unidos, em torno da utilização da Base de Alcântara, entre outros problemas, coloca em risco as comunidades quilombolas que moram na região há mais de duzentos anos. Recente pesquisa do IPEA, um órgão governamental, divulgada e debatida nas atividades que organizaram a presença do Brasil na III Conferência Mundial contra o Racismo, mostram dados estarrecedores sobre a situação da população negra na educação. Constatam a situação de inferioridade econômica e social dos negros em relação ao brancos e que a educação dos negros no Brasil é pior que na África do Sul, um país que por décadas viveu sob o regime do Apartheid. Dados da Pnad/98 indicam que o número de analfabetismo entre a população negra acima de 10 anos soma mais de 10 milhões de pessoas, representando 67% do total de analfabetos em todo o Brasil. Em todos os Estados do Norte os negros analfabetos superam os 70% e no Nordeste os 65% da população que vive nesta situação. Mesmo no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, onde os analfabetos negros perdem em importância para os analfabetos brancos, este percentual vai muito além da participação da população negra no total da população destes Estados. Em relação às mulheres negras esse quadro se torna ainda mais dramático. Os dados relativos à renda informam que o PIB per capita das mulheres negras é de 0,76 da média dos salários mínimos dos demais trabalhadores e representam 60% das chefes de família que recebem menos que um salário mínimo. Neste cenário, o combate ao racismo está associado à luta pelo fim do modelo econômico e político que Fernando Henrique Cardoso em seus oito anos de governo conseguiu implantar em nosso país. Superar o racismo implica, antes de tudo, garantir condições iguais e dignas de vida para todos, visando superar as desigualdades de raça, classe, gênero e orientação sexual. Implica na redistribuição radical das riquezas e dos gastos públicos para as políticas de atendimento às demandas sociais. Em uma política pública que priorize os setores menos favorecidos, principalmente aqueles que sintetizam alto grau de pobreza, de discriminação racial ou de gênero, na perspectiva de atingir a igualdade de condições sociais. Implica em optarmos por um projeto político em que a igualdade social e a pluralidade racial sejam os pontos centrais dos programas e plataformas eleitorais que estão sendo apresentadas para a sociedade brasileira nestas eleições. A democratização do poder, a distribuição das rendas e a questão da terra tornam-se eixos que devem orientar a nossa mobilização, a nossa organização e também o posicionamento das entidades que integram a CONEN em relação ao voto da população negra nas eleições de 2002. É impossível pensar a superação do racismo sem que essas condições sejam garantidas para todos. Esta posição tem sido constantemente repetida nos documentos produzidos pela CONEN nos últimos anos e continua sendo uma referência importante para o seu posicionamento frente às eleições para Presidente da República, Governos Estaduais, Senadores, Deputados Federais e Deputados Estaduais que serão realizadas em todo o país, no ano de 2002. Para a Presidência da República, entre os vários candidatos que estão se apresentando como oposição ao candidato apoiado pela governo FHC, o candidato José Serra, a CONEN conclama as entidades que em torno dela se organizam a orientar o voto da população negra em Luiz Inácio Lula da Silva. Luiz Inácio Lula da Silva é quem consegue apresentar um programa que considera a questão racial negra um dos grandes impasses nacionais a serem solucionados para a construção de um Brasil sem preconceito, discriminação e racismo. Aglutina as forças sociais que querem mudanças reais nesse país e que há anos lutam juntas por um outro Brasil, democrático, justo e igualitário. Sua eleição para Presidente da República do Brasil poderá significar o início de mudanças estruturais na vida da população negra brasileira, a exemplo do significado da vitória de Nelson Mandela para a população negra da África do Sul. É importante que se eleito, Lula como um marco do início dessas mudanças, expresse seu compromisso em implementar as políticas públicas contidas na Declaração e Programa de Ação aprovadas na Conferência das Américas preparatória para a III Conferência Mundial contra o Racismo realizada em Santiago do Chile em dezembro de 2000 e na III Conferência Mundial contra o Racismo em setembro de 2001, na cidade de Durban, na África do Sul e ratificada pelo Brasil juntamente com outros 166 países. Para que essas mudanças aconteçam muito depende de nós, movimentos sociais organizados em nosso país, forças entre as quais a Coordenação Nacional de Entidades Negras está incluída. A Coordenação Nacional de Entidades Negras está se propondo ser uma interlocutora na busca da superação e no combate ao racismo de um futuro governo dirigido por Luiz Inácio Lula da Silva, e a somar forças para a constituição de um amplo movimento por mudanças no Brasil que consiga concretizar os sonhos que não só os nossos, de soberania e preservação de nossos territórios, de nossas culturas, de nossas identidades, de nossas religiões, de nossos projetos de vida, de um novo Brasil sem sexismo, sem racismo, sem preconceito e discriminação de qualquer natureza. Um novo Brasil onde todos e todas possam viver com justiça e dignidade! Manifesto aprovado em reunião da Coordenação Nacional de Entidades Negras realizada nos dias 6 e 7 de Julho de 2002, no Instituto Cajamar, em São Paulo A Coordenação Nacional de Entidades Negras A CONEN surge a partir do I ENEN (Encontro Nacional de Entidades Negras) realizado em São Paulo no ano de 1991. É a instância de articulação nacional dos Fóruns Estaduais de Entidades Negras que são os espaços de construção da unidade para elaboração e intervenção coletiva a partir da compreensão de cada estado. Entidades Negras para a CONEN são entidades e grupos de maioria negra que tenham o objetivo específico de combate ao racismo, ou expressem valores culturais de matrizes africanas, que não tenham vínculos com as estruturas governamentais ou partidárias. Entre em contato com a CONEN: conen_br@yahoo.com.br Por um Brasil sem racismo! Agora é Lula!
https://www.alainet.org/es/articulo/106448?language=en
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