A ALCA e o meio ambiente
11/08/2002
- Opinión
"A produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de
produção social ao mesmo tempo em que esgota as duas fontes de onde brota
toda a riqueza: a terra e o trabalhador". Karl Marx, no livro O Capital.
"Os fatos nos lembram, a cada instante, que não reinamos sobre a natureza
como um conquistador reina sobre um povo estrangeiro (...), mas que fazemos
parte dela como nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro, que estamos em seu
seio e que todo o domínio sobre ela reside na vantagem que temos, em relação
ao conjunto das outras criaturas, de conhecer suas leis e poder servir-nos
dela de forma criteriosa". Friedrich Engels, no livro O papel do trabalho na
transformação do macaco em homem.
A grave crise ambiental, que hoje devasta todo o planeta, tem gerado intensa
preocupação entre os setores comprometidos com o futuro da humanidade.
Ecologistas, comunistas e outras forças sociais conscientes constatam que o
capitalismo, na fase mais destrutiva e regressiva da sua história, tem
agravado ainda mais o frágil e delicado equilíbrio da natureza. Muitos chegam
a prognosticar que a globalização neoliberal em curso coloca em risco a
própria existência da vida na terra. No discurso em homenagem aos 49 anos da
tomada do quartel do Moncada, em julho passado, Fidel Castro enfatizou a
gravidade do tema:
"Há apenas 30 anos, pouquíssimas pessoas no mundo mencionavam o meio
ambiente. Os conceitos e temas relacionados com a destruição das florestas, a
erosão e salinização dos solos, as mudanças de clima, a camada de ozônio em
extinção, as enormes massas de gelo derretendo-se, cidades e nações inteiras
condenadas a fatalmente desaparecerem sob o mar, ar e águas contaminados,
enfim, pareciam invenções de cientistas catastrofistas e não realidades
palpáveis", afirmou. Hoje, entretanto, este assunto deveria ser tratado como
um dos maiores desafios das forças da esquerda, segundo o líder da revolução
cubana.
Já Joel Kovel e Michael Löwy, autores do romântico Manifesto ecosocialista,
concluíram que "o sistema capitalista não pode regular, e muito menos
superar, a crise que desatou. Não pode resolver a crise ecológica, porque
isto requer pôr limites à acumulação – uma opção inaceitável para um sistema
cuja prédica se apóia no lema: crescer ou morrer!". Para eles, o capitalismo,
"com seu imperativo de expansão constante da rentabilidade, expõe os
ecossistemas a contaminações desestabilizadoras; fragmenta habitats que
evoluíram durante tempos para permitir o florescimento dos organismos;
destrói os recursos e reduz a sensual vitalidade da natureza diante do frio
comércio requerido pela acumulação de capital".
Este tema ganha ainda maior atualidade com o debate sobre a implantação da
Área de Livre Comércio das Américas. Proposta pelos EUA, a Alca pretende ser
o maior bloco econômico do planeta, consolidando num patamar superior as
relações capitalistas de mercado. Desta forma, é evidente que ela terá
profundos impactos também sobre o meio ambiente. Em projeção, quais seriam
estes efeitos? Ainda são escassos os estudos sobre este complexo assunto, mas
os existentes já demonstram que há vários riscos futuros.
Indústrias sujas
No texto "Alca e meio ambiente: possíveis impactos sobre o Brasil", Carlos
Eduardo Frickmann Young, professor de economia da UFRJ, destaca que a
tendência com a implantação deste acordo é uma maior especialização dos
países do continente em atividades contaminantes. "A produção de bens e
serviços intensivos em tecnologia e, portanto, onde a mão-de-obra barata e a
abundância de recursos naturais são fatores pouco importantes para a
competitividade internacional, é cada vez mais concentrada nos países
desenvolvidos. Por outro lado, aos países em desenvolvimento resta disputar
os mercados de produtos menos dinâmicos, onde a expansão do markeet shore
acaba sendo obtida por formas ‘espúrias’, tais como subsídios à exportação,
baixo custo dos salários e consumo acelerado da base de recursos naturais".
Isto só reforçaria a cruel dinâmica do comércio internacional no capitalismo.
Nela, os países centrais se especializam no fornecimento de bens de alto
valor agregado. Já a periferia do sistema fica restrita às commodities, em
que a possibilidade de ganhos de competitividade está mais ligada à
existência de insumos baratos (energia, recursos naturais e mão-de-obra
baratos) do que com às inovações tecnológicas. Neste sentido, é comum a
"migração" das chamadas indústrias sujas dos países desenvolvidos para os
países dependentes. "A Alca deve ser encarada com grande seriedade. Na medida
em que iniciativas de controle ambiental são menos efetivas nos países da
América Latina do que nos EUA e Canadá, existe o risco de que haveria uma
especialização relativa das atividades poluentes ao sul do Rio Grande",
alerta.
O histórico recente das exportações industriais brasileiras confirma esta
tendência de concentração em atividades sujas. Na década de 90, em especial,
esta distorção gerou graves prejuízos. Frickmann adverte que a Alca pode
deteriorar ainda mais este quadro e lista alguns dos prejuízos implícitos
nesta proposta: "Econômicos, porque nossos produtos terão seus preços
continuamente depreciados em relação aos produtos de elevado conteúdo
tecnológico (de cujas importações seremos cada vez mais dependentes);
sociais, porque nossa mão-de-obra ficará condenada perpetuamente a baixos
salários como forma de garantir ‘eficiência’ na produção; e ambientais,
porque políticas mais efetivas de controle da poluição e cobrança pelo uso de
recursos naturais serão descartadas para não perdermos ‘competitividade’".
O economista Sergio Schlesinger, autor do texto "Livre comércio e preservação
do meio ambiente: uma parceria insustentável", é ainda mais crítico em
relação à Alca. Ele discorda dos apologistas do "livre comércio", que afirmam
que os prejuízos ambientais podem ser compensados pelo aumento da produção
industrial e do emprego nos países dependentes. "A abertura comercial tem
levado as economias mais frágeis a um processo contínuo de
desindustrialização. A produção industrial, que já representou mais de um
terço do PIB brasileiro, tem hoje participação de cerca de apenas 20%". Ele
lembra que os segmentos mais atingidos foram exatamente aqueles capazes de
induzir um desenvolvimento com maior conteúdo tecnológico e a utilização
menos intensiva de recursos naturais.
Para ele, "o aprofundamento da especialização internacional da produção torna
a pauta de exportações destes países ainda mais intensiva em recursos
naturais, requeridos em quantidades crescentes para a produção – no caso do
Brasil, de soja, alumínio, celulose, produtos siderúrgicos e outras
commodities, agrícolas e industriais, produtos cada vez mais desvalorizados
nos mercados mundiais". Além disso, a tal liberalização comercial provocou
crescentes desequilíbrios das contas externas no Brasil, México e em outros
países. "Os recursos governamentais encontram-se cada vez mais comprometidos
com a redução destes desequilíbrios (estímulos às exportações, atração de
capitais externos a custos elevados). Com isso, recursos para a preservação
ambiental tornam-se cada vez mais necessários e cada vez mais escassos".
Já no texto "Impactos comerciais da Área de Livre Comércio das Américas", o
economista Alexandre Parente, do IPEA, estudou as possíveis conseqüências da
eliminação de todas as tarifas alfandegárias. Se isto ocorresse, as
exportações brasileiras para os países integrantes da Alca cresceriam cerca
de 7% ou US$ 1,5 bilhão, enquanto as importações registrariam aumento de
aproximadamente 18%, correspondente a US$ 4,3 bilhões. O resultado, altamente
desfavorável à balança comercial, ainda teria outros efeitos negativos.
Segundo a pesquisa, haveria um aumento significativo das importações de
produtos de maior conteúdo tecnológico e um incremento das exportações de
produtos intensivos em recursos naturais, com pouco valor agregado. O
desastre ambiental seria evidente.
Dimensão estratégica
Por último, vale citar um excelente artigo, publicado na revista Debate
Sindical, de Pedro Ivo de Souza Batista, presidente do Instituto Terrazul e
integrante da Comissão Nacional de Meio Ambiente da CUT. Preocupado em
vincular as lutas ecológicas com a luta socialista, ele afirma que a questão
ambiental hoje adquire uma dimensão estratégica. No período histórico
anterior, a devastação ambiental já "era grave, causava grandes impactos,
como na destruição das florestas nas Américas quando da chegada dos
colonizadores europeus. Mas o modelo de produção e consumo não era suficiente
para pôr em cheque o equilíbrio do planeta em escala mundial". Atualmente, o
capitalismo destrói a natureza em escala global.
Para ele, isto indica que a luta ambiental é mais um motivo, e dos mais
nobres, para se engajar na luta contra o capitalismo. "Os militantes das
lutas sociais devem ser também militantes ecologistas, pois não haverá
sociedade realmente nova se não houver uma integração maior entre o homem e a
natureza". Além de ser um sistema de exploração do trabalho, o capitalismo é
antagônico à preservação da natureza. Ele realiza uma produção e um consumo
insustentáveis, voltado exclusivamente ao lucro. Cria uma sociedade
descartável e gera forças destrutivas que prejudicam a saúde humana,
desequilibram os ecossistemas e desmantelam as economias locais. Sua
conclusão é de que qualquer luta ecológica, para ser conseqüente, precisa ser
também uma luta contra o capital. "Não é possível pensar em desenvolvimento
sustentável no capitalismo. Só a sua derrota definitiva permitirá enfrentar a
grave crise ambiental".
No seu entender, a proposta de criação da Alca só aprofundará a
mercantilização da natureza, submetendo os ecossistemas e a biodiversidade às
leis de mercado e aos ditames das corporações empresariais. No artigo citado,
ele lista quais seriam os principais impactos da implantação deste acordo
comercial:
* Privatização dos recursos naturais. Em função do esgotamento destes
recursos, particularmente da água e da energia, as transnacionais pretendem
obter o monopólio dessas áreas vitais para a humanidade;
* Transferência do poder de decisão e gestão dos recursos naturais do público
para o privado. Com a privatização dos recursos naturais, ocorrerá o
enfraquecimento dos estados nacionais e da sociedade civil no controle e na
gestão dos mesmos. Isto ampliará a presença das corporações no controle do
meio ambiente, submetendo-o cada vez mais a sua lógica de mercado;
* Enfraquecimento das leis ambientais nacionais e locais e da soberania
nacional sobre os territórios e o meio ambiente. A Alca pretende submeter as
leis e os acordos ambientais, nacionais e internacionais, aos acordos de
livre comércio, visando a maior mercantilização da biodiversidade e o
controle dos territórios;
* Superexploração dos recursos naturais e transferência de "indústrias
sujas". Atualmente, os países centrais exportam indústrias poluentes
rejeitadas em seus territórios e incentivam, na periferia, o aumento da
produtividade via exploração de recursos naturais. A Alca, como já foi dito,
só agravará este processo;
* Intensificação da produção agrícola baseada na monocultura, agrotóxicos e
alimentos transgênicos. A Alca é uma demanda da poderosa indústria agrícola,
que quer a liberação dos transgênicos. Isto aumenta o perigo da contaminação
ambiental, dos problemas da saúde humana e da retirada do direito universal
dos trabalhadores rurais às sementes. Com o livre comércio, os que vivem da
agricultura familiar teriam dificuldades para garantir a comercialização de
seus produtos. Já os latifundiários seriam beneficiados com o fortalecimento
da lógica puramente comercial e monetária da apropriação das terras;
* Destruição da biodiversidade. A Alca aprofundará a destruição dos
ecossistemas e da biodiversidade. O objetivo das multinacionais é explorar as
florestas, principalmente a Amazônica, usando sem escrúpulos a
biodiversidade, impedindo que as populações locais e indígenas possam
realizar o uso sustentável desses recursos. Através da biotecnologia, elas
desenvolveriam alimentos e medicamentos, patenteando fórmulas e
comercializando produtos a preços exorbitantes. "Ao invés do pau-brasil de
500 anos atrás, teríamos os produtos da floresta amazônica como a nova fonte
de exploração capitalista", concluí Pedro Ivo.
* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da
revista Debate Sindical e organizador do livro "Para entender e combater a
Alca" (Editora Anita Garibaldi, 2002).
https://www.alainet.org/es/node/106248
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