A imaginação agrária brasileira

14/07/2002
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A superação do paradigma neoliberal permite descortinar potenciais esquecidos e construir novos mundos possíveis. Nas eleições de 2002, há um novo espaço para a legitimação da reforma agrária no Brasil. A demonstração pública da fraude, em parte oficialmente reconhecida, dos números da reforma agrária propagandeada pelo governo FHC recoloca o tema na cena política do país. A pretensa agenda positiva do governo federal, transformada em peça de propaganda insistentemente veiculada, foi nos últimos anos combinada com a criminalização do MST. No auge da campanha publicitária - o Ministério do Desenvolvimento Agrário gastou 6,57 milhões em publicidade em 2001, proporcionalmente mais até do que o midiático Ministério da Saúde - Raul Jungmann veiculou o programa "Porteira Aberta", em que o governo convocava famílias sem terra para que se inscrevessem em programas de reforma agrária pelos correios. Em um ano, 500 mil famílias se inscreveram, mas o governo não fala sequer do prazo previsto para o assentamento das famílias. De acordo com o jornal Folha de São Paulo, de 17 de junho, apenas 3% dos assentados entre 1995 e 2001 receberam o título de posse definitiva das terras. Em particular, os números divulgados para o biênio 2000 e 2001 - 127.611 famílias assentadas - eram 705% superiores aos apurados pela auditoria do órgão, após a divulgação pela imprensa da fraude. Famílias apenas inscritas, terrenos vazios, áreas sem casas e infra-estrutura básica teriam sido contabilizados pelos fraudadores. Os números divulgados relativos ao apoio de crédito aos assentados são igualmente estarrecedores: para a safra de 2000/2001, a linha de custeio da produção destinada a famílias assentadas em transição para a condição de microprodutores contava com apenas 198 milhões de reais. Destes, foram realmente repassados 9,78 milhões (4,98% do total). E pensar que FHC falou nestes anos que estava realizando a maior reforma agrária do planeta. De fato, como afirma Gerson Teixeira, em Requisitos para um verdadeiro programa de Reforma Agrária, "ao se analisar os números das Estatísticas Cadastrais do Incra, de 1992 a 1998, período que abrange boa parte do primeiro governo FHC, constatamos que o território sob domínio dos imóveis acima de 2.000 hectares foi ampliado em 56 milhões de hectares, passando a totalizar 178,2 milhões de hectares. Somente este incremento de área dos grandes imóveis (os 56 milhões de hectares), corresponde a 82% da área total dos imóveis com área até 100 hectares e a 10 vezes o somatório das áreas dos imóveis até 10 hectares, na posição de 1998". País real Com suas afirmações dogmáticas e diagnósticos simplistas, com sua adesão cega a juízos previamente formados e com precária impregnação de realidade, o paradigma neoliberal cultivou nos anos noventa a ignorância sobre o Brasil real. Neste sentido, são muito importantes as observações, publicadas no Jornal do Brasil de 17 de março, de Sergio Paganini Martins, secretário-adjunto do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentado, sobre dados do Censo de 2000, do IBGE. Segundo este, atualmente 81% da população brasileira é urbana e apenas 19% é rural. No entanto, diz Paganini, se considerado o critério da OCDE, através do qual são consideradas zonas urbanas apenas aquelas com 150 habitantes por quilômetro quadrado, apenas 57% da população brasileira seria considerada propriamente urbana. Apenas o Equador, Salvador, Guatemala e República Dominicana usam critérios semelhantes aos usados no Brasil, que datam de 1938, instituídos através de uma lei de Getúlio Vargas pelo qual eram consideradas cidades todas as sedes municipais existentes. O critério incorreto de medição ocultaria um fenômeno dos últimos quinze anos, que é o fim do êxodo rural, certas dinâmicas de retorno ao campo e, em um quadro de não investimento, a proliferação de ocupações não agrícolas no meio rural. Paganini chama a atenção para o potencial inaproveitado de cerca de 90 milhões de hectares de terra improdutiva no país. Segundo cálculos do próprio Ministério da Agricultura, o seu aproveitamento poderia gerar uma produção de 250 milhões de toneladas de grão, 30 milhões de toneladas de frutas e 9 milhões de toneladas de carne. O terceiro aspecto refere-se ao potencial de produção e emprego das propriedades rurais familiares. Hoje, elas empregam cerca de 13 milhões de pessoas. Imaginação criadora Segundo o Ministério da Agricultura, no cômputo geral do crédito rural, na década de 70 os recursos aplicados alcançaram o valor médio anual de 12,9 bilhões de dólares; na década de 80, a média foi de 13,5 bilhões de dólares; e na primeira metade da década de 90, 8,3 bilhões de dólares. No governo FHC, período 1995/2000, o valor médio anual aplicado pelo sistema nacional de crédito rural, incluindo o PRONAF, foi de apenas 6,5 bilhões de dólares. Mais do que uma esterilização de recursos, a pressão financeira impõe a esterilização da imaginação criadora do país. Pensar a reforma agrária, acoplada a uma política de desenvolvimento agrário e a um processo de distribuição de renda, tem exatamente este sentido. De colocar a opinião pública do país frente aos outros países possíveis, de exercitar o melhor espírito utópico, aquele cujas raízes inscrevem-se na própria trama da vida e da cultura de um povo. São Paulo, julho de 2002 * Publicado in "Periscopio", Edição nº18
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