O Brasil (e o mundo) às vésperas das nossas eleições
30/06/2002
- Opinión
I. O que caracteriza a situação internacional desde o ano passado é a entrada numa
zona de turbulência, pela conjunção entre o esgotamento do ciclo expansivo da
economia norte-americana e a virada da política norte-americana para uma linha de
violenta ofensiva.
1) A década de noventa esteve marcada pela expansão da economia dos EUA e pela
ideologia do livre comércio e do consumismo, identificados com o governo Clinton,
com Davos, com Mc’Donalds, com Microsoft e com a ideologia de uma “nova
economia”, que nunca mais entraria em crise.
No seu conjunto, a expansão econômica e o discurso ideológico que a acompanhou,
consolidaram a nova forma de ideologia norte-americana no mundo pós-guerra fria,
o mundo de uma única super-potência imperial, os EUA.
2) Essa expansão se esgotou no ano passado e, com ela, todo o impulso que a economia
norte-americana projetava sobre a economia mundial, que tinhas suas outras
locomotivas – Japão e Europa ocidental – em recesso ou em crescimento lento. Ao
mesmo tempo, com os atentados de 11 de setembro, os EUA mudaram seu discurso para
dentro e para o mundo. Substituíram, como primeiro slongan, a ideologia do livre
comércio e da desregulação econômica e financeira, pela da “luta sem trégua
contra o terrorismo”.
3) Os EUA passaram a pautar sua ação pela guerra contra o que eles consideram
portadores do terrorismo – países, pessoas, instituições -, sem qualquer
compromisso com qualquer forma de legalidade ou institucionalidade internacional.
Se a guerra do Golfo foi levada a cabo em nome da ONU, a da Iugoslávia em nome da
OTAN, a do Afeganistão foi levada adiante pelos EUA diretamente, sem qualquer
outro limite que a capacidade auto-assumida de retaliar quem ele decida que seja
responsável por agressões – existentes ou potenciais – contra seu território e
seus interesses. Dessa forma está anunciado o ataque ao Iraque, mesmo sem provas
ou adesão de aliados internacionais. Estes passaram a ser valorizados conforme
sua capacidade de fortalecer a capacidade de guerra norte-americana. Assim a
Rússia, a China, o Paquistão, Israel tornam-se aliados importantes, diminuindo
nesse sentido a importância da Europa e para níveis mais baixos ainda a América
Latina ou o Japão.
4) O tema energético define o mapa das intervenções prioritárias dos EUA.
Praticamente todos os principais focos de conflito atuais tem o componente
energético, quase sempre o petróleo e/ou o gás: Afeganistão, Colômbia, Venezuela,
Oriente Médio, Argentina. O governo Bush, por seu lado, tem nas grandes empresas
petrolíferas, originárias do seu governo no Texas, um dos seus pilares. A
renovação da aliança com a Rússia deve ser vista nesta ótica, a de independizar
relativamente a dependência petrolífera dos EUA do Oriente Médio e, em
particular, do seu vacilante aliado principal nessa zona, a Arábia Saudita.
5) Com essa mudança, a política norte-americana ganhou em capacidade de iniciativa,
atribuindo-se o direito de agir conforme decida, como país ferido por uma
agressão e assumindo a defesa da “comunidade internacional” em perigo. Porém,
perde em abrangência, em capacidade de conquistar adesões, porque o tema do
“terrorismo” sensibiliza muito menos do que o do acesso ao consumo. Este tornou-
se inviável pelo esgotamento da capacidade expansiva da economia norte-americana
da década de noventa.
6) A economia norte-americana segue ainda em recessão. O enorme endividamento da
fase anterior, a falta de confiança para investir desde então, os escândalos
financeiros – respondem pelas dificuldades para retomar o desenvolvimento. A
expansão conseguida desde então foi promovida pelos investimentos estatais –
militares, nas companhias aéreas e em outros setores em risco, além das medidas
abertamente protecionistas. Deve-se esperar por zigue-zagues até que seja
encontrada alguma via de retomada da expansão, mas por enquanto deve haver
prolongamento de níveis baixos e instáveis de expansão, muito longe dos níveis da
década de noventa.
7) Deve assim prosseguir o período de combinação entre recessão e clima de guerra.
O ataque ao Iraque deve dar continuidade à lista de agressões norte-americanas,
com o apoio ou o silêncio cúmplice das outras potências imperialistas e da
debilitada e desmoralizada ONU. As resistências devem continuar sendo locais ou
regionais – como aquelas contra a Operação Colômbia e contra a Alca -, sem que
surja ainda uma outra liderança – nacional ou regional – que se valha dos pontos
de debilidade da liderança norte-americana. A força em processo de constituição
a partir do Fórum Social Mundial de Porto Alegre é o embrião que pode aglutinar
capacidades de resistência locais, regionais e internacionais em torno de um
programa unificador em escala mundial contra a hegemonia imperial norte-americana
e o neoliberalismo.
II. No plano nacional, o Brasil – assim como outros países, como a Argentina, o
Uruguai, o Chile, - vivem a ressaca da farra cambial que propiciou os níveis
de estabilidade monetária conseguidos. Estes se basearam – no caso brasileiro
de maneira mais aberta – na atração de capitais especulativos mediante
elevadas taxas de juros, que funcionaram como imãs desses capitais, gerando
porém dependência crescente deles e elevação brutal dos níveis de
endividamento.
1. O “risco” desses países, apontado pelas empresas de assessorias dos agentes
financeiros, se baseia nessas debilidades para recomendar a seus clientes que não
invistam mais ou que o façam apenas com condições cada vez mais favoráveis (para
eles). Assim a dívida brasileira não apenas cresce, como piora seu perfil: é de
prazo mais curto, com taxas de juros mais altas e cada vez mais atrelada ao
dólar. O governo FHC, que havia subido prometendo passar a limpo a dívida
pública, elevou-a várias vezes e piorou seu perfil. Este é o fundo-do-problema
do “risco” apontado atualmente no Brasil, risco para os que vêm ganhando com o
endividamento crescente e a vulnerabilidade produzidos pela política de
FHC/Malan.
2. Esta política, além disso, promoveu as duas transformações mais negativas na
economia brasileira: a sua financeirização e a precarização contínua das relações
de trabalho. A financeirização significa que o Estado brasileiro ficou
completamente reféns do seu endividamento com o capital especulativo, as grandes
empresas investem boa parte do seu capital na especulação e as pequenas e médias
não conseguem sair do seu endividamento, pelas elevadas taxas de juros que
continuam vigentes, apesar da recessão da economia. Essas políticas levaram à
hegemonia do capital financeiro sobre a economia brasileira, que teve como uma de
suas conseqüências que a única política de grande porte de apoio a um setor
determinado foi a de resgate do sistema bancário, dado que o capital especulativo
passou a ser o sangue que corre pelas veias da economia brasileira e assim
qualquer infecção neste se propagaria imediatamente pelo conjunto da economia.
3. A precarização significa que se antes havia uma grande proporção de trabalhadores
na informalidade, sua expectativa era sair dela, indo do campo para a cidade,
sendo contratados com carteira assinada na indústria manufatureira, na construção
civil, no comércio ou no setor de serviços. Agora o grande capital, apoiado nas
políticas governamentais de flexibilização laboral e de hostilidade ao
sindicalismo combativo, impõe cada vez mais a passagem das relações de trabalho
formais para a informalidade e a insegurança, em geral no setor de serviços, com
ausência total ou quase isso de qualquer direito que garanta os trabalhadores.
Não somente a maior parte dos trabalhadores não tem carteira assinada, como
perdeu essa esperança e quantidades crescentes é expropriada da sua carteira de
trabalho e dos direitos formais.
4. Esgotou-se a capacidade da política antinflacionária de eleger e reeleger
presidentes. Pela opinião média que as pesquisas recolhem, ninguém poderá
eleger-se prometendo a estabilidade monetária e, a partir dela, o
desenvolvimento, políticas sociais, geração de empregos, etc. Todos os
candidatos prometem que compatibilizarão a estabilidade monetária obtida com a
retomada do desenvolvimento, a geração de empregos, políticas sociais, etc., e
esta é a quadratura do círculo, isto é, a impossibilidade. Por isso coloca-se no
centro do debate – posta pelas próprias elites e por Malan em nome delas – o tema
da estabilidade ou, em outras palavras, o cumprimento dos compromissos
financeiros assumidos por este governo e portanto a desqualificação de qualquer
atitude que significasse já não a moratória da dívida, mas mesmo até sua
renegociação, xingada de “calote”.
5. Cumprir esses compromissos à risca significa dar continuidade a um elemento
essencial da política atual, baseada na atração do capital especulativo para
cobrir os déficits e assim reproduzir infinitamente esses mecanismos. Essa a
rigor é a questão central que pode definir a natureza da cada candidatura. A de
Lula pode se diferenciar claramente das outras se ele reiterar o que já disse:
“Não vale a pena ganhar se não for para mudar a política do Malan” e, por outro
lado, na política externa, sua oposição à Alca, que não é manifestada pelos
outros candidtos.
6. Estes outros propõem, de forma mais clara, uma espécie de continuidade enganosa
entre a política de Malan e promessas incompatíveis de retomada do
desenvolvimento econômico, criação de empregos e investimentos sociais, no mesmo
estilo de De la Rúa, que acabou dilapidando seu capital eleitoral em pouco meses.
A candidatura de Lula, sob forte pressão para “dar garantias” – que na prática
significa cumprir os compromissos assumidos pelo governo FHC/Malan e que
significariam correr atrás de um bilhão de empréstimos por semana, o que levaria
a um fracasso como o de De la Rúa.
Perspectivas:
1. As eleições brasileiras, junto com as da Argentina – eventualmente as bolivianas,
caso o candidata da esquerda, Evo Morales passe para o segundo turno – e a
evolução da situação venezuelana, podem propiciar um quadro político novo na
América Latina a partir do plano institucional. Caso, ao contrário, a campanha
de terror contra Lula, a campanha golpista contra Hugo Chavez, a vitória das
forças continuistas na Argentina, com um novo candidato peronista vitorioso e com
a volta à presidência do neo-liberal Sanchez de Losada na Bolívia, daria
continuidade ao quadro político e ideológico atual no continente, em cima da pior
crise social desde os anos trinta. A isso se soma a radicalização direitista do
novo presidente colombiano, que significa a colocação em prática, sem obstáculos
da Operação Colômbia e a generalização da guerra.
2. Nesse caso, a turbulência internacional se instalaria de forma profunda e extensa
na América Latina, sem perspectiva de desembocadura política, por falta de
governos ou lideranças nacionais e internacionais que a canalizassem. Impasses
podem levar a quebras institucionais – abertas ou indiretas, como soluções tipo
“fujimorismo”: endurecimento repressivo por detrás de governos formalmente
eleitos.
3. A América Latina e o Brasil mudam rapidamente de cara ao longo desta década, que
verá a ambos transformados nos próximos anos. A tarefa mais importante para a
esquerda é a da construção de projetos estratégicos para o continente que, mais
além das eleições e do plebiscito da Alca, representem um horizonte para projetos
nacionais, regionais e continentais – com a retomada, reformulada e ampliada do
Mercosul - além de novas formas de alianças no plano internacional para os países
do continente.
Rio de Janeiro, Inicio de julho de 2002
* Emir Sader é especialista em américa latina e Professor da UERJ e USP
https://www.alainet.org/es/node/106041?language=es
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