Neoliberais culpam Brasil pelo fracasso do modelo

A crise chegou

27/06/2002
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Os resultados das políticas neoliberais se encontram presentes no quotidiano aterrador dos brasileiros, sob a forma da violência, do desemprego e da corrupção, mas a culpa é atribuída a nós. A crise na Argentina, que se alastra para o Uruguai e o Brasil, não é o primeiro, único ou último fracasso da estratégia neoliberal de desenvolvimento dos países da periferia, ex-colônias, de industrialização precária, primário-exportadores, dependentes política e ideologicamente. Procuram-se culpados para a derrocada argentina, sobre a cabeça dos quais se possa depositar a culpa pelos danos causados. As alternativas se sucedem, apresentadas ironicamente pelos próprios culpados: acusam eles o peronismo, o populismo, o corporativismo, o desequilíbrio orçamentário, a corrupção, os "ladrões" de Battle, os vizinhos, o Mercosul, enfim, o povo argentino. Tudo para que a mesma política possa continuar sendo promovidas em outros países subdesenvolvidos, entre eles o Brasil. Procura-se isentar de culpa os verdadeiros culpados que são a visão equivocada do sistema econômico e político nacional e mundial, as políticas neoliberais implementadas, os organismos e governos desenvolvidos que apoiaram e até forçaram a adoção de tais políticas e as elites político-econômicas na periferia que as assumiram por convicção, interesse próprio, fraqueza ou desânimo. Vale a pena relembrar o que ocorreu, como em uma reprise de filme de horror, para impedir que essa estratégia se consolide: a miséria, o desespero, a violência e a corrupção que causam. As premissas da visão neoliberal, na década de 80, eram de que as causas do subdesenvolvimento, da pobreza, da inflação, do conflito social, do autoritarismo e da estagnação econômica na periferia seriam o caráter arcaico, autárquico, estatista, corporativista, populista e terceiro-mundista dos sistemas econômicos e políticos daqueles Estados periféricos. Assim, a culpa pelos seus males seriam deles mesmos e jamais do colonialismo, do imperialismo velho ou novo, dos oligopólios internacionais, das relações desiguais de troca, do protecionismo dos países desenvolvidos e das oligarquias vinculadas aos interesses estrangeiros. Assim, caso esses países aceitassem serem modernizados pelas forças dinâmicas do centro do sistema mundial e para tal adotassem as políticas que os livros recomendam - desde Adam Smith e David Ricardo - como essenciais ao bom funcionamento de qualquer economia, em síntese, o livre jogo das forças de mercado e a total desregulamentação estatal, teriam eles seus problemas resolvidos e ingressariam, triunfais, no Primeiro Mundo. Os objetivos de tais políticas eram eliminar a inflação, alcançar o equilíbrio fiscal, estabilizar a taxa de câmbio, cumprir todos os compromissos com credores e assim criar um ambiente favorável ao capital estrangeiro, que acorreria abundante e benéfico aos países periféricos, realizaria novos investimentos, transferiria e geraria tecnologia, modernizaria as estruturas produtivas, geraria emprego, criaria plataformas exportadoras, integraria a estrutura econômica local à estrutura mundial e geraria as divisas necessárias à remuneração desses capitais - a qual seria módica e justa. A poupança doméstica, nesse novo ambiente, se ampliaria e se transformaria em investimento, de forma autônoma ou em associação com o capital estrangeiro e se reduziria a crônica evasão de divisas. A execução técnica desses programas foi confiada a economistas jovens, sem experiência maior na administração pública ou na política que, por essa razão, seriam imparciais e científicos, pois tinham estudado em universidades americanas e muitos deles foram empregados de agências como o FMI, o Banco Mundial e o Bird. Nessas instituições, eles se impregnaram da nova ideologia individualista e utilitarista, para a missão "salvadora" de reformar suas pátrias corrompidas pelo desenvolvimentismo cepalino, estatizante, marxizante, inflacionário e caloteiro. Essas mesmas agências foram responsáveis pelo gradual processo de "convencimento" das elites nos países da periferia da extrema conveniência em adotar reformas estruturais que foram sintetizadas no chamado Consenso de Washington. As elites e governos recalcitrantes foram constrangidos pelas chamadas "condicionalidades" exigidas pela comunidade financeira internacional pública e privada, para renegociar prazos e juros da asfixiante dívida externa que havia sido gerada pelas crises do petróleo, pela reciclagem dos petrodólares e pela estratosférica e súbita elevação dos juros promovida pelo Federal Reserve Bank americano, sob o comando de Paul Volker. A execução política dos programas de modernização por meio de reformas estruturais foi confiada na América do Sul ou a políticos "novos" - como Alberto Fujimori e Fernando Collor - ou a políticos de passado nacionalista, populista ou social-democrata. Esses últimos abandonaram suas antigas convicções e abraçaram sua nova fé. Foi o caso de Andres Perez, Carlos Menem, Rafael Caldera, Paz Estensoro e Fernando Henrique Cardoso. Os resultados desses programas foram muito semelhantes em toda a América do Sul. Enquanto durou sua primeira etapa, resultados positivos foram apresentados: queda rápida da inflação para índices inferiores a dois dígitos, ingresso abundante de capital estrangeiro, inclusive especulativo, aumento significativo de importações, rápido processo de desregulamentação e de privatizações, reformas do Estado com a atribuição de funções quase públicas a ONGs, programas sociais de solidariedade assistencialista nas áreas de educação e saúde e, finalmente, crescimento do PIB ainda que a taxas em geral modestas. Após a fase inicial, os resultados foram também muito semelhantes em todos os países da América do Sul, com variações de ritmo e de intensidade, devidas a peculiaridades dos processos locais, como o impeachment de Collor. Aumentou brutalmente a concentração de renda e de riqueza; agravou-se o desemprego, a exclusão e a violência social; acelerou-se vertiginosamente a desnacionalização, a desintegração das cadeias produtivas, os déficits em transações correntes, a dívida pública e a dívida externa; espraiou-se a corrupção impune, pública e privada; verificou-se o colapso externo, às vezes adiados por mega-empréstimos (como os recentes US$ 10 bilhões pelo Brasil ao FMI) e acentuou-se o descrédito nas instituições e o risco de regressão política. Para os críticos dessas políticas neoliberais, as causas de seus resultados trágicos são a total inadequação de suas premissas sobre a estrutura e funcionamento da economia, o desconhecimento das realidades e causas do subdesenvolvimento e dos interesses das oligarquias locais, bem como a visão simplista e utópica sobre a dinâmica do sistema político-econômico internacional. As regras jurídicas e tendências "naturais" desse sistema permitem aos países desenvolvidos manter seus privilégios: concentração de riqueza e de poder militar, político e tecnológico. Para os defensores do neoliberalismo, porém, as causas do fracasso seriam ainda aquele caráter arcaico, autárquico, estatista, corporativista e populista dos sistemas econômicos e políticos dos Estados periféricos, cuja resistência aos benefícios das políticas adotadas tinha se revelado maior do que pensavam. Portanto, a solução seria aplicar as mesmas políticas com mais vigor, por meio de lideranças menos corrompidas e, eventualmente, de administradores internacionais, como chegou a ser sugerido por indivíduos como Rudiger Dornbush em relação à Argentina. Em resumo, as suas políticas são corretas, mas seus executores periféricos não foram suficientemente honestos, competentes e firmes. O que se necessita, no mundo, é um novo Colonial Service. No Brasil, os executores das políticas neoliberais jamais aceitaram a designação de "neoliberais". Auxiliados pelo passado ambíguo de seus líderes principais, insistiram em se apresentar sempre como progressistas, acusando seus opositores de reacionários defensores de privilégios das oligarquias. Contaram, todavia, com a cooperação irrestrita dos setores econômicos privilegiados e dos setores políticos oligárquicos e retrógrados que não só não se queixaram, como aplaudiram tais políticas. Apresentaram-se como sociais democratas de terceira via financista e "globalizante" em sua estratégia econômica, repleta de "revolucionários" programas sociais. Em resumo, para concentrar mais renda - a massa salarial caiu em oito anos de 36% para 26 % da renda nacional e os lucros, juros e aluguéis passaram de 64% para 74% -, executaram programas "modernos" de defesa dos direitos humanos e das minorias, iludidas por uma retórica altissonante e por uma propaganda maciça, acompanhada por verbas mínimas, insuficientes e contingenciadas. Sobre a excelência das políticas de direitos humanos, que se manifestem as populações excluídas, violadas e massacradas das periferias e as populações encarceradas, saudosas das senzalas. O regime democrático, louvado em excesso por seus fariseus, foi afrontado pelas investidas sistemáticas contra a Constituição, desfigurada pelas emendas conquistadas a peso de ouro, pela enxurrada de Medidas Provisórias, pelo controle da imprensa por meio de excepcionais verbas de propaganda e pela cooptação de muitos formadores de opinião. No lugar das cassações, a compra dos votos; acaba a censura nas redações dos jornais e surge a propaganda milionária, as concessões de veículos e a cooptação. Agora, os resultados de tais políticas se encontram presentes no quotidiano aterrador dos brasileiros, sob a forma de extraordinária violência e insegurança nas cidades e no campo, do desemprego e do subemprego, da corrupção impune e atrevida, das estradas esburacadas, do saneamento inexistente, das doenças ressuscitadas, da desorganização da energia, das tarifas superfaturadas de serviços, do calote nos fundos de renda fixa (prenúncio de outros calotes), da crise externa latente que se revela na desconfiança dos investidores, da alta do dólar, dos índices de risco, dos relatórios de agências e da crítica dos acadêmicos não comprometidos, ainda que conservadores. Os executores dessas políticas alegam as mesmas razões para suas dificuldades e advogam os mesmos remédios. A culpa é da oposição, a culpa é do povo brasileiro, a culpa é dos políticos e das oligarquias. Em suma, a culpa é do Brasil arcaico e dos brasileiros que não os compreendem. Para eles, foi apenas uma aposta que perderam, mas que tentarão renovar, viciados no pano verde da especulação e da finança internacional. Desejam perpetuar suas políticas na aparência da propaganda austera, na negociação de acordos internacionais (Alca, por exemplo), no mega-empréstimo junto ao FMI, em uma eventual ajuda norte-americana direta e a até na intimidação da população. As urnas julgarão os nefastos resultados da - sem sombra de dúvidas - pior política da República. Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador, ex-chefe do Departamento Econômico do Itamaraty e ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (Ipri) do Itamaraty
https://www.alainet.org/es/node/106013
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