A ALCA e o futuro do capitalismo: a sorte está lançada
05/04/2002
- Opinión
Assim como o capitalismo liberal desmoronou em 1929, o capitalismo
neoliberal implodiu junto com as torres gêmeas no dia 11 de setembro de
2001. Nos séculos XVIII e XIX as burguesias protagonizaram revoluções
para que se garantisse o direito à propriedade. No século XXI a
burguesia global patrocina uma nova e terrível revolução para assegurar
o direito ao monopólio.
Passaram-se trinta anos e as inovações da 3ª Onda de nada adiantaram.
As novas tecnologias cavaram ainda mais o abismo entre as classes e
países, ressuscitando a temida equação super-produção/sub-consumo. A
financeirização prostituiu a racionalidade econômica e gerou ainda mais
instabilidade. O incremento do hedonismo consumista só fez aumentar o
vazio de legitimidade de uma vida em que tudo está à venda, ela
inclusive. Dilema das elites globalizadas: como deter a queda
tendencial das margens de lucro e a fragilização dos mecanismos de
adesão e de identificação do sistema? O que fazer quando os métodos
compassivos e multilaterais não funcionam?
A transição não poderia ser menos brutal. Omeletes são feitos
quebrando-se os ovos. Alterações drásticas no regime de acumulação
capitalista só são viabilizadas com guerra, racismo e mistificação. As
instituições liberais-representativas e a diplomacia devem sair de
cena. O Thermidor imperial veio para realizar seu papel apocalíptico.
O grande capital resolveu converter seus privilégios em direitos
inalienáveis. Instituições financeiras e multinacionais já blindaram
seus interesses estratégicos convertendo-os em cláusulas pétreas e
irremovíveis. A infalibilidade do mercado foi decretada a manu
militari. As bolsas de valores são os verdadeiros sistemas eleitorais
e os regimes de investimentos as novas constituições.
A máquina foi programada para romper o tecido social e não há como
consertá-la. Ludd e o ludditas nunca foram tão atuais, enquanto o
movimento sindical e a esquerda institucional nunca foram tão
obsoletos. Sindicatos e partidos de oposição tornaram-se um sistema de
freios e contrapesos em desuso em tempos de arbítrio global. Onde
falta compartilhamento sobra violência. O que podia se esperar de uma
globalização elitizante e excludente, a não ser guerra em larga escala?
Inimigo mais que perfeito
Os "atentados terroristas" possibilitaram o desencadeamento de
múltiplas ofensivas militares e geopolíticas indispensáveis para o
reenquadramento econômico, jurídico e político do capitalismo. Estas
iniciativas já estavam engatilhadas há algum tempo pelos grupos
vinculados ao Complexo-industrial-militar norte-americano. As
explosões do prédio federal em Oklahoma, da sede da AMIA e da embaixada
israelense em Buenos Aires, das embaixadas dos EUA na África e,
finalmente, os atentados em NY e Washington, cumpriram o papel de abrir
caminho para a ascensão da extrema direita e para suas soluções
totalitárias. As Milícias norte-americanas e o Al'Qaeda - McVeigh e
Bin Laden - sempre foram instrumentos dóceis e disciplinados da CIA.
O que aconteceu no dia 11 de setembro foi antes de tudo um golpe de
Estado, e não foi em um Estado qualquer, mas sim naquele que é o centro
decisório do capitalismo global. Este putch global representa uma
tentativa de soldagem do poder transnacional, financeiro e bélico do
capitalismo sob comando absoluto do Império norte-americano.
Não se fazem inimigos como antigamente. Hoje os fazem mais
eficientemente. Vêm "sob encomenda" e just in time. O inimigo
multiuso e com valor agregado não é apenas anti-americano, é "anti-
ocidental". Resultado: os interesses dos EUA passam a ser então os
interesses de toda civilização ocidental. As elites imperialistas,
literalmente, devem muito a Bin Laden, pois lhes fez o favor de
realizar o "destino manifesto" dos EUA.
O unilateralismo da administração Bush encontrou sua justificativa no
unilateralismo do "terrorismo". Com o mundo sob a ameaça de um inimigo
invisível e implacável, todas as formas de "legítima defesa" imperial
se justificam. Não há mediações - e tampouco política, democracia e
tolerância - entre o mal absoluto e o bem absoluto. Somos todos reféns
desta fabulosa operação de terrorismo induzido e encoberto. O que
dizer então dos povos e países situados na periferia imediata do
"Império do bem"?
ALCA: chocando o ovo da serpente
A ALCA não é apenas mais uma aventura colonial do Tio Sam ou uma
overdose de imperialismo. Está ocorrendo uma alteração qualitativa no
modo de incorporação da periferia. Para reorganizar os fatores
econômicos e os recursos naturais do hemisfério segundo suas
conveniências, as corporações transnacionais necessitam da garantia de
plena liberdade dos investimentos e de uma nova ordem privada despida
de quaisquer critérios políticos ou públicos.
As estruturas decisórias locais e nacionais seriam
desterritorializadas. Os mecanismos de geração de emprego, renda e
serviços ficariam imunes a qualquer influência alheia ao mercado.
Espoliação metódica e centralizada. Neocolonialismo de precisão. O
novo Eldorado precisa ser um "ambiente econômico estável e previsível".
A ALCA já foi definida como "o destino natural" dos países americanos.
As negociações com a periferia servem apenas para neutralizar
resistências e acomodar interesses. Qualquer acordo neste contexto
significa submissão consentida pois não há nenhuma reciprocidade à
vista. Os mercados devem se abrir incondicionalmente, exceto o norte-
americano por ser ele o "regulador informal" do mercado hemisférico,
não podendo se sujeitar a oscilações provenientes de uma "concorrência
irregular". Competidor bom é competidor morto, anuncia nas entrelinhas
o pacote de proteção ao aço norte-americano.
Livre comércio agrícola, apenas no quintal. O sistema agro-industrial
norte-americano alega não poder prescindir de cotas de proteção e de
milionários subsídios, previstos na Lei Agrícola de 1956 e emendas,
para manter "sua coerência e seu nível ótimo de encadeamento".
Investimentos e compras governamentais devem ser flexibilizados,
impedindo-se qualquer discriminação quanto a porte, nacionalidade ou
desempenho da empresa competidora. Tratamento igual a desiguais é
apenas a versão envergonhada da lei do mais forte.
Os EUA manterão incólume seu temido arsenal de salvaguardas
unilaterais: a Seção 301, a Super 301, a Especial 301, a Seção 232 e a
Seção 122 que permitem punições e exigem indenizações de empresas e
países que violem regras internas de propriedade intelectual, gerem
desequilíbrios econômicos e perda de faturamento por parte de empresas
norte-americanas. O capital mais protegido do mundo, efetivamente, não
se submeterá a sistemas hemisféricos de defesa da concorrência,
mecanismos anti-dumping e de resolução de controvérsias.
A Autorização para a Promoção Comercial (TPA- antigo fast track)
aprovada na Câmara dos Deputados dos EUA confirma a integração de mão
única. A TPA cristaliza barreiras tarifárias e não tarifárias para
mais de 293 produtos e ainda inaugura uma nova norma que restringe
variações cambiais, o que sinaliza para a dolarização do bloco. Trata-
se de um acordo do grande capital para privatizar os benefícios da
ALCA. A sacrossanta organicidade da economia norte-americana acima de
tudo. Na Área de Livre Comércio das Américas, os EUA se reservam ao
direito de intervir quando prejudicados. Uma Alca com Emenda Platt.
Sem medo de ser fênix
A ALCA representa o estágio e o laboratório da nova ordem unipolar e
autocrática em gestação. Estágio porque sem a absorção da periferia a
economia norte-americana não superará a recessão e porque a mega-
cruzada imperialista em busca da hegemonia absoluta não será possível
sem uma base econômica estável. Laboratório porque a área de livre
comércio a ser criada será um balão de ensaio para o surgimento de uma
nova institucionalidade capaz de vertebrar um capitalismo com um
marcado perfil segregacionista e totalitário.
A extensão da guerra imperialista dependerá certamente da neutralização
de todos os focos de resistência no hemisfério. A "marcha para o sul"
dependerá de uma minuciosa varredura de qualquer traço de autonomia. A
prévia exclusão de Cuba já é uma demonstração cabal. O completo
desmonte da Argentina e do Equador, a chantagem "terrorista" contra o
Peru, as enormes pressões desferidas contra Chavez na Venezuela e a
militarização do Plano Colômbia atestam que a ALCA é apenas guerra por
outros meios.
Se a ALCA é um pré-requisito indispensável para a realização do projeto
unipolar e totalitário do grande capital norte-americano, a sua derrota
consiste no primeiro passo para a elaboração de um outro projeto de
integração. O não à ALCA deve ser um sim a uma área liberada e a
serviço das grandes maiorias, com democracia participativa, justiça e
igualdade social. Diante dos trágicos resultados da experiência
neoliberal na América Latina nada é mais sensato do que exigir o
rompimento com o FMI e o não pagamento da dívida externa, a
desmercantilização dos serviços públicos e a revisão das privatizações.
A campanha anti-ALCA, nucleada pelo Plebiscito continental, não pode
ser apenas mais uma demonstração de força, um lobby bem comportado ou
uma pressão facilmente ajustável e manipulável. A campanha anti-ALCA
debe cumprir a missão de ser a incubadora de renovados sujeitos
históricos. Um novo bloco histórico constituído por todas as forças
democráticas, anti-imperialistas e anti-capitalistas do continente.
O grande desafio da campanha anti-ALCA é proporcionar o surgimento de
espaços autônomos de articulação de interesses, de modo a superar a
inércia decorrente do engessamento dos canais de expressão dos "de
baixo". A construção de um amplo movimento de massas capaz de retratar
todas as nuances da revolta popular requer engenhosidade institucional
e acurada visão estratégica. Nestes termos, a campanha continental
contra a ALCA deve ser:
1.. perene e voltada para construção de novas forças hegemônicas, e
não somente para realização de um plebiscito pictório e performático.
2.. aberta a todas formas de rebeldia anti-sistêmica para ser mais que
uma simples somatória dos resíduos de força acumulada ( e dissipada no
isolamento, na burocracia e nos jogos inter-burgueses)das organizações
tradicionais.
3.. horizontal e socializadora do poder. Nenhum poder será derrubado
se o contra-poder se organizar à sua imagem e semelhança: dirigentes
iluminados e suas suas bases adestradas, grandes plenárias reproduzindo
as verdades reveladas pelos reis-filósofos.
4.. simbólico-cultural. Se o sucesso da ALCA depende da
anulação/degeneração da consciência coletiva dos povos e das classes
subalternas, a luta para derrotar a ALCA deve ser antes de tudo uma
auto-descoberta cultural. O medo da origem é o mal, e o mal é o medo
de sermos nós, dizia Chico Science. Não adianta montar um discurso e
uma ideologia, sem que se construa uma nova postura. Uma sempre outra
identidade individual-coletiva.
Frente à destruição sistemática de memórias, classes, regiões, nações e
Estados, só nos resta apostar na ininterrupta reconstrução de nós
mesmos. Todas vozes dissonantes. Todos os fragmentos de resistência.
Todas as cinzas. E Fênix renascerá.
Luis Fernando Novoa Garzon, Sociólogo, membro da ATTAC-Brasil
l.novoa@uol.com.br
https://www.alainet.org/es/articulo/105777
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