Cultura da paz
08/02/2002
- Opinión
A cultura dominante, hoje mundializada, se estrutura ao redor da
vontade de poder que se traduz por vontade de dominação da natureza,
do outro, dos povos e dos mercados. Essa é a lógica dos dinossauros
que criou a cultura do medo e da guerra. As festas nacionais e seus
heróis são ligados a feitos de guerra e de violência. Os meios de
comunicação levam ao paroxismo a magnificação de todo tipo de
violência, bem simbolizado pelo “exterminador do futuro”. Nessa
cultura o militar, o banqueiro e o especulador valem mais do que o
poeta, o filósofo e o santo. Nos processos de socialização formal e
informal, ela não cria mediações para uma cutura da paz. E sempre de
novo faz suscitar a pergunta que, de forma dramática, Einstein colocou
a Freud nos idos de 1932: é possivel superar ou controlar a violência?
Freud, realisticamente, responde: “É impossível aos homens controlar
totalmente o instinto de morte…Esfaimados pensamos no moinho que tão
lentamente mói que poderíamos morrer de fome antes de receber a
farinha”.
Sem detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência
funcionam poderosas estruturas. A primeira delas é o caos sempre
presente no processo cosmogênico; a evolução comporta violência em
todas as suas fases. Possivelmente a inteligência nos foi dada também
para pormos limites a ela e conferir-lhe um sentido construtivo. Em
segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou a
dominação do homem sobre a mulher e criou as instituições do
patriarcado assentadas sobre mecanismos de violência como o Estado, as
classes, o projeto da tecno-ciência, os processos de produção como
objetivação da natureza e sua sistemática depredação. Essa cultura
patriarcal gestou, em terceiro lugar, a guerra como forma de resolução
dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do capital,
hoje globalizada; sua lógica é a competição e não a cooperação, por
isso, gera permanentemente desigualdades, injustiças e violências.
Todas estas forças se articulam estruturalmente para consolidar
a cultura da violência que nos desumaniza a todos. A essa cultura da
violência há que se opôr a cultura da paz. Hoje ela é imperativa.
É imperativa, porque as forças de destruição estão ameaçando,
por todas as partes, o pacto social mínimo sem o qual regredimos a
níveis de barbárie. É imperativa porque o potencial destrutivo já
montado pode ameaçar toda a biosfera e impossibilitar a continuidade
do projeto humano. Ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o
projeto da paz ou conheceremos, no limite, o destino dos dinossauros.
Onde buscar as inspirações para cultura da paz? Mais que
imperativos voluntarísticos, é o próprio processo antroprogênico a nos
fornecer indicações objetivas e seguras. A singularidade do 1% de
carga genética que nos separa dos primatas superiores reside no fato
de que nós, à distinção deles, somos seres sociais e cooperativos. Ao
lado de estruturas de agressividade, temos capacidades de afetividade,
com-paixão, solidariedade e amorização. Hoje é urgente que
desentranhemos tais forças para conferir rumo mais benfazejo à
história. Toda protelação é insensata.
O ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza
e co-pilotar a marcha da evolução. Ele foi criado criador. Dispõe de
recursos de re-engenharia da violência mediante processos
civilizatórios de contenção e uso de racionalidade. A competitividade
continua a valer mas no sentido do melhor e não de destruição do
outro. Assim todos ganham e não apenas um.
Há muito que filósofos da estatura de Martin Heidegger, resgatando uma
antiga tradição que remonta aos tempos de César Augusto, vêem no
cuidado a essência do ser humano. Sem cuidado ele não vive nem
sobrevive. Tudo precisa de cuidado para continuar a existir. Cuidado
representa uma relação amorosa para com a realidade. Onde vige cuidado
de uns para com os outros desaparece o medo, origem secreta de toda
violência. A cultura da paz começa quando se cultiva a memória e o
exemplo de figuras que representam o cuidado e a vivência da dimensão
de generosidade que nos habita, como Gandhi, Dom Helder Câmara e
Luther King e outros. Importa fazermos as revoluções moleculares
(Gatarri), começando por nós mesmos. Cada um estabelece como projeto
pessoal e coletivo a paz enquanto método e enquanto meta, paz que
resulta dos valores da cooperação, do cuidado, da com-paixão e da
amorosidade, vividos cotidianamente.
* Leonardo Boff é teólogo, escritor e autor de A oração de S.Francisco,
uma mensagem de paz para o mundo atual.
https://www.alainet.org/es/node/105593?language=en
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