MST, Igreja e movimentos sociais
10/12/2001
- Opinión
O dia 17 de abril de 1997 foi muito especial no Brasil. Culminou, em
Brasília, a marcha nacional promovida pelo MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra) por justiça, emprego e reforma
agrária. Mais de 100 mil pessoas aplaudiram nas ruas da capital
federal os agricultores que, vindos de diferentes regiões do país,
caminhavam há mais de um mês.
O Brasil é um país de dimensões continentais. Possui 600 milhões de
hectares de terras cultiváveis. No entanto, desde que foi ocupado
pelos portugueses, em 1500, nunca conheceu uma reforma agrária. Basta
dizer que apenas 2% dos proprietários rurais são donos de 48% das
terras agricultáveis do país. Há latifúndios com extensão superior ao
território da Holanda ou da Bélgica.
Habitado por 170 milhões de pessoas, o Brasil abriga 53 milhões
vivendo abaixo da linha da pobreza, com renda mensal inferior a US$
60, e 22 milhões sobrevivendo abaixo da linha da indigência, com
renda diária inferior a US$ 1. São 15 milhões de sem-terra, excluídos
do campo nos últimos trinta anos, por força da extensão dos
latifúndios, da construção de barragens e da inadimplência frente à
alta dos juros bancários.
Organização camponesa
O MST nasceu em 1984, por iniciativa de trabalhadores rurais
vinculados à Igreja católica. Desde então, ele organiza as famílias
sem-terra em acampamentos à beira das estradas e assentamentos que
funcionam no sistema de cooperativa. Há, atualmente, cerca de 300 mil
famílias vivendo sob tendas de plástico preto junto às rodovias e
existem mais de 1.500 assentamentos rurais espalhados pelo país,
abrigando 250 mil famílias, e nos quais aproximadamente 100 mil
crianças e adolescentes são escolarizados. Outras 4,8 milhões de
famílias aguardam o seu pedaço de terra.
O MST não espera que o governo brasileiro promova a reforma agrária.
Sujeito político, ele mobiliza seus militantes para ocupar terras
ociosas e fazendas improdutivas, sobretudo de propriedade de
grileiros que, através da violência e de meios escusos, apropriaram-
se de terras pertencentes ao poder público ou falsificaram títulos de
posse, como ocorre com mais freqüência na região amazônica.
Pesquisa encomendada, em março/97, pela Confederação Nacional da
Indústria, constatou que 85% dos pesquisados apoiavam as ocupações de
terra, desde que sem violência e mortes; 94% consideravam justa a
luta do MST pela reforma agrária; e 77% encaravam o MST como um
movimento legítimo.
O dado mais expressivo deixou o governo de Fernando Henrique Cardoso
acuado: 88% disseram que o poder público deveria confiscar as terras
improdutivas e distribuí-las aos sem-terra.
Cooperativas
Quando um frade defende a reforma agrária, há quem pergunte: por que
a Igreja não começa por suas terras? A resposta é simples: porque já
faz isso há tempos e, segundo o Incra (1997), restam-lhe 179.399
hectares retalhados por todo o país, o que equivale a 0,05% dos
latifúndios brasileiros, que somam 362.000.818 ha. E tomara que esse
restante passe logo às mãos dos sem-terra. Detalhe: os 20 maiores
proprietários rurais detêm, juntos, a mesma área de terra de 3,3
milhões de pequenos produtores familiares!
Por culpa da mídia, que quase nunca mostra o outro lado da moeda,
muitos ignoram que o MST se encontra organizado em 21 estados, onde
já assentou, graças às ocupações de áreas ociosas, cerca de 138 mil
famílias, com renda média de 3,7 salários mínimos mensais (dados da
FAO). O salário mínimo brasileiro equivale, hoje, a US$ 71.
Suficiente para duas pessoas jantarem num dos melhores restaurantes
de S. Paulo, desde que o vinho seja dos mais baratos. No entanto, 19%
dos brasileiros vivem com renda mensal inferior a meio salário
mínimo.
Não fosse o MST, milhões de sem-terras estariam agora favelizados,
engrossando o contingente de excluídos e marginais, aumentando a
violência nas cidades e agravando os índices de desemprego, que hoje
afeta a vida de 7% dos 60 milhões de trabalhadores brasileiros. Nos
últimos 40 anos, o êxodo rural levou para a cidade 40% dos 70% que
viviam no campo.
De que vale ocupar se não há crédito, assistência técnica e infra-
estrutura? É o que indagam muitos que têm mais olhos para a suposta
incapacidade dos lavradores, mas se mostram cegos para as longas
extensões de terras ociosas dos latifundiários.
O MST criou, em 1992, o Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA),
congregado na Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do
Brasil (Concrab). Esta entidade reúne 49 cooperativas de produção
agropecuária, 32 de prestação de serviços, 10 cooperativas regionais
de comercialização, dezenas de associações e cooperativas centrais em
oito estados e cerca de 100 microagroindústrias.
O que faz a Concrab? Produz cartilhas sobre questões contábeis,
previdenciárias e trabalhistas, e promove cursos de capacitação
técnica, entre os quais se destacam os Laboratórios Organizacionais
do Campo e os cursos de Formação Integrada na Produção. Para
aprimorar a capacitação técnica, a Concrab mantém, em Veranópolis
(RS), o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma
Agrária (Iterra), equivalente ao segundo grau em administração
cooperativista. É único no país.
Nos últimos anos, a Concrab canalizou mais de R$ 300 milhões para os
assentamentos, graças ao Programa Especial de Crédito para a Reforma
Agrária (Procera) e convênios firmados com os ministérios do Trabalho
(Secretaria de Formação Profissional) e Agricultura (Departamento
Nacional de Cooperativismo). Agora, o governo federal procura
esvaziar o MST recusando-lhe os créditos agrícolas a que tem direito.
Quem só crê ao ver, deveria visitar assentamentos altamente
produtivos, como o de Santa Maria do Oeste (PR), que produz 3.500
kg/hora de erva-mate verde; o de São Mateus (ES), com capacidade para
beneficiar 10 mil sacas de café no período da safra; o de Sarandi
(RS), que resfria 13 mil litros de leite por dia.
Vale a pena conferir ainda as sete casas de farinha, em Itarema e a
fábrica de queijo de Monsenhor Tabosa, ambas no Ceará; e a indústria
de processamento de pêssego, em Piratini (RS). Em Dionísio Cerqueira
(SC), há uma fábrica de jeans que produz 1.000 calças/mês e comprova
que os assentamentos são capazes de gerar empregos aos jovens
desmotivados para o trabalho na terra.
A maior produtora de sementes olerícolas da América Latina é a
Cooperal, em Bagé (RS), vinculada à Concrab. Os assentamentos gaúchos
de Hulha Negra e Bagé são responsáveis por 40% da produção nacional
de sementes de hortaliças.
Em suma, o MST ocupa para trabalhar e produzir. O latifúndio acumula
para especular. Errado não é o MST. É a lei que defende o que é
improdutivo e pune quem quer terra para plantar. Para o Evangelho,
porém, "o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado"
(Marcos 2, 27). A propriedade, sobretudo ociosa e supérflua, não pode
estar acima do direito humano à vida.
O MST já mereceu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos Vladimir
Herzog; a Medalha Chico Mendes, por sua luta contra a violência no
campo; o Prêmio Nobel Alternativo, do Parlamento sueco (1991); a
Menção de Honra do Prêmio Rei Balduíno, da Bélgica (1994); e o Prêmio
UNICEF (1995), por seu trabalho de educação com a infância, de cuja
cerimônia de entrega participou o ministro Paulo Renato, da Educação.
Reforma agrária - uma luta de todos!
O povo brasileiro vive num país de dimensões continentais - 8.500.000
km2. Boa parte das terras constitui latifúndios improdutivos.
Enquanto grandes empresas derrubam florestas, como a Amazônia, para
espalhar o gado ou contrabandear a madeira; derramam mercúrio em
nossos rios para extrair minérios preciosos; invadem as terras de
indígenas e posseiros, semeando morte e violência; homens e mulheres
do campo são expulsos da zona rural, condenados a engrossar o
contingente de miseráveis que alargam, em torno das cidades, o
cinturão de favelas.
As famílias organizadas pelo MST querem terras e recebem tiros.
Querem semear e são obrigadas a abrir covas. Querem produzir frutos e
esculpem cruzes. Querem ficar no campo e são enxotadas para a cidade.
Querem empunhar enxadas e são manietadas com algemas. Querem colher
alimentos e juntam tristezas. Querem assentar-se em terras
improdutivas e o governo envia a polícia para obrigá-las a ficar do
outro lado da cerca, como se a propriedade estéril tivesse mais valor
que a vida humana.
O Brasil só conheceu, em quase 500 anos de história desde a
colonização portuguesa, apenas uma reforma agrária, a que retalhou o
país em Capitanias Hereditárias, implantando o modelo do latifúndio.
No século 19, aos negros libertos da escravidão foi negado o acesso à
terra e, ainda hoje, eles são duplamente discriminados, por serem
negros e por serem pobres.
Profetizou o poeta que "o sertão vai virar mar, o mar vai virar
sertão". Se não chega, urgente, a reforma agrária, o sertão
prosseguirá virando um mar de desamparados no asfalto das cidades,
agravando a violência urbana. Hoje, quase 80% da população brasileira
vivem em cidades. Não haverá cidadania nem fim da escalada de
violência que assola os grandes munícipios enquanto não houver
reforma agrária.
Se a migração continuar alta, crescerá o desemprego urbano, uma vez
que as áreas de expansão das fronteiras agrícolas não são mais
suficientes para atrair as famílias expulsas de suas terras pela
mecanização, pela construção de barragens hidrelétricas e pela
concentração de terras. Outrora, uma família expulsa de sua terra no
Paraná ia para Rondônia ou para a Transamazônica. Isso acabou, o
Brasil está inteiramente loteado. Quem perde a terra não tem para
onde ir, nem pode encontrar outras terras. Acaba na beira da estrada
ou na favela.
Critérios de reforma agrária
O Brasil tem solução. Se a terra for repartida, as favelas serão
reduzidas. Se houver mais escolas, não será preciso construir mais
cadeias. Se os agricultores tiverem justo acesso a insumos e
implementos agrícolas, não ficarão em mãos de atravessadores
escorchantes. Se houver canais diretos entre produtores e
consumidores, a inflação deixará de ficar a mercê da ganância dos
supermercados e de grandes atacadistas.
A desapropriação é o principal recurso a ser utilizado na
redistribuição das terras agrícolas. Em princípio, deveriam ser
desapropriadas propriedades improdutivas com área superior a 500
hectares, situadas nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste; no Centro-
Oeste, propriedades improdutivas com área superior a 1.000 hectares;
e na região Norte, propriedades improdutivas com área superior a
1.500 hectares.
Falta ao governo vontade política também na questão fundiária. Se ele
quisesse, haveria terras para assentamentos. Elas viriam: a) Das
desapropriações de áreas aproveitáveis que não estão sendo
exploradas. Sobretudo terras ociosas nas áreas de conflitos e de
ocupações, como prevê a Lei 8.629/93; b) Da revisão de negociações
irregulares com terras do governo, conforme determina o artigo 51 da
Constituição; c) Da negociação das terras dos usineiros em troca da
quitação de suas dívidas; d) Das terras das empresas estatais; e) Das
penhoras dos grandes proprietários que estão devendo aos bancos
oficiais.
O artigo 51 da Constituição de 1988 estabelece que devem ser revistas
as doações, vendas e concessões de terras públicas realizadas entre
1º de fevereiro de 1962 e 31 de dezembro de 1987. Naquele período, o
Senado Federal aprovou 51 resoluções, que transferiram mais de 10
milhões de hectares para apenas 45 empresas em 12 Estados. Esta área
permitiria o assentamento de mais de 300.000 famílias! Tudo isso deve
ser rigorosamente investigado, como determina a Constituição, visando
dispor de terras para os assentamentos. Também devem ser apontadas as
terras públicas federais nas regiões de fronteira do Brasil,
recuperando as terras griladas para a reforma agrária.
Deve ser garantido prazo mínimo de 5 anos para os contratos de
arrendamento, parceria e comodato, bem como o direito de, quem
trabalha a terra, renovar o contrato por mais um período de 5 anos. A
área somente poderá ser retomada para uso do proprietário, na
exploração direta da terra. Quanto maior for o prazo do arrendamento,
menos impostos pagará o proprietário da terra. Quanto maior foi o
aluguel da terra, mais impostos pagará o proprietário.
É preciso pôr fim à "amenidade fiscal" com que o latifúndio tem sido
tratado e adotar o valor real da terra nua como base para a cobrança
de impostos; utilizar alíquotas reais fortemente progressivas para
terras abandonadas, e regressivas para áreas racionalmente
cultivadas; utilizar a renda presumida como critério de lançamento do
imposto de renda de imóveis rurais não cultivados. A alíquota final
do ITR (Imposto Territorial Rural) deve levar em conta, para efeito
de progressividade, a área total dos imóveis de um mesmo
proprietário.
A reforma agrária é a solução para o Brasil. E não depende só da luta
dos agricultores. Depende de todos os brasileiros. É uma luta de todo
o nosso povo - pessoas, classes sociais, empresas, movimentos
populares e sindicais, Igrejas e religiões, funcionários públicos,
partidos políticos.
Sem reforma agrária, no Brasil não haverá democracia afirmou o papa
João Paulo II em 1981, ao receber o presidente José Sarney, em Roma.
Presença da Igreja
A Igreja católica do Brasil está na origem do MST e dos movimentos
sociais que atuam, hoje, em nosso país. Para a maioria dos
brasileiros, a religiosidade cristã constitui o substrato de sua
mundividência, de seu modo de encarar a vida, o mundo e a história.
Em outras palavras, a ideologia do nosso povo se tece em categorias
religiosas. Nunca conhecemos o desencantamento do mundo de que falava
Max Weber aos analisar a modernidade européia.
Após a Segunda Guerra Mundial, o catolicismo social, sobretudo de
inspiração francesa, chegou ao Brasil, estimulando os movimentos de
Ação Católica. O profetismo de dom Helder Camara teve papel decisivo
para que a Igreja, em nosso país, se aproximasse progressivamente dos
pobres. No início dos anos 60 surgiram as Comunidades Eclesiais de
Base, núcleos populares de nutrição da fé e mobilização por direitos
sociais. Chegaram a ser cerca de 100 mil em meados dos anos 80,
congregando mais de 5 milhões de pessoas. Regidas pelo método
Ver/Julgar/Agir, a articulação entre fé e direitos sociais produziu a
matriz que serviu de pedra-angular à Teologia da Libertação.
Portanto, a Teologia da Libertação é ato segundo. Ato primeiro é a
prática dos pobres na tentativa de superar o estado de opressão em
que vivem.
Em 1964, o Brasil caiu em mãos de uma ditadura militar. Embora a
Igreja católica tenha saudado o novo regime que, a seu ver, livrara o
país do perigo comunista, logo a defesa dos direitos dos pobres deu
início a uma escalada de atritos entre governo e Igreja. Bispos,
padres, religiosas e leigos foram perseguidos, torturados, presos,
exilados e/ou assassinados. Eu mesmo passei quatro anos nos cárceres
da ditadura. Essa bem-aventurança da perseguição resultou na maior
proximidade entre os movimentos pastorais da Igreja católica e os
movimentos sociais.
Nos anos 70, as Comunidades Eclesiais de Base tornaram-se sementeiras
de movimentos sociais, animando a organização de mulheres, jovens,
favelados, desempregados, sem-terra e sem-teto. A Comissão Pastoral
da Terra fez os agricultores, organizados na luta por seus direitos,
reconhecerem que não bastava reivindicar reforma agrária. Era preciso
começar a realizá-la. Sobretudo, exigir a mudança do modelo econômico
neoliberal, dependente e excludente, que o FMI impõe ao nosso país.
Surgiu, pois, o MST, ao lado de tantos outros movimentos, como a CUT
(Central Única dos Trabalhadores) e a CMP (Central de Movimentos
Populares).
A Igreja católica não pretende monitorar os movimentos sociais, nem
muito menos confessionalizá-los. Contribui para que se organizem e
sejam autônomos, laicos, mantendo com as pastorais sociais relações
de parceria em projetos de interesse comum, como o resgate da ética
na política, e em momentos cruciais da conjuntura nacional, como a
convocação do Plebiscito da Dívida Externa, em 2000. Dão-se as mãos
também em torno da agenda social da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), como são os casos da Campanha da Fraternidade, na
Quaresma, que todos os anos adota um tema social; o Grito dos
Excluídos, a 7 de setembro, data de independência do Brasil; e a
defesa dos direitos humanos.
A Igreja católica no Brasil não quer ser uma espécie de partido
político confessionalizado, nem pretende substituir a ação do Estado.
Antes, quer ser fiel ao Evangelho de Jesus, que veio para que todos
tenham vida e vida em plenitude (João 10, 10). A vida é o dom maior
de Deus. Num continente e num país sob o peso de estruturas de morte,
lutar pela vida é estar ao lado dos que são involuntária e
injustamente privados de acesso aos bens materiais capazes de
assegurar uma existência livre e feliz.
Para a fé cristã, os movimentos sociais são as ferramentas com as
quais se constrói, na história humana, o Reino de Deus. Sem a
mediação desses movimentos, a promessa do Reino torna-se uma utopia,
e a desigualdade social um castigo perene a tantos que, na América
Latina, nasceram sem receber da loteria biológica o prêmio de uma
vida digna.
https://www.alainet.org/es/node/105469?language=en
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