O Cardeal
10/09/2001
- Opinión
À porta do presídio, o bispo é impedido de entrar. Só o arcebispo, que
ali nunca esteve, tem passe-livre. Pouco depois, o arcebispo que viu
torturados, mas jamais acreditou em torturas é removido para Roma. O
papa nomeia para o seu lugar o bispo proibido de visitar os presos
políticos. Do alto de seu novo múnus arquiepiscopal, o futuro cardeal,
todo paramentado, apresenta-se à porta do presídio que, agora, se abre
ao sopro da força do Espírito.
O novo arcebispo sobe as escadas da galeria de celas, ouve atento as
denúncias de maus-tratos, visita os frades dominicanos acusados de
subversão, abençoa os que sofrem.
Semanas depois, um dos frades é levado de volta às sevícias e, durante
três dias, submerge no batismo de sangue, em comunhão com os mártires.
O cardeal deixa a sua casa, pois vendera o palácio episcopal para
construir centros comunitários na periferia, e vai ao presídio consolar
o frade, cuja boca havia sido aberta para receber a hóstia de descargas
elétricas, enquanto a pele ardia à brasa de cigarros.
O cardeal ignora a advertência dos policiais e entra, sem pedir
licença, numa delegacia de proteção da ordem política e social. Ninguém
ousa barrá-lo, nem se atreve a acusá-lo de desacato à autoridade. O
cardeal está de clergyman e caminha firme rumo ao subsolo, onde
encontra um de seus padres sangrando em dores. Como quem teme mais a
autoridade de Deus que a dos homens, o carcereiro mete a chave no
cadeado e destranca os ferrolhos, permitindo que o cardeal toque as
chagas do sacerdote descido há pouco do pau-de-arara.
O jornalista judeu foi suicidado no mesmo local em que o frade havia
sido espancado. O cardeal reage indignado e convoca os fiéis para a
missa solene na catedral. Rabinos e empresários, empenhados em demover
o cardeal, dirigem-se à casa dele e tentam convencê-lo da insensatez de
uma culto católico para um judeu assassinado. O cardeal retruca
enfático: Jesus também era judeu. E abre a catedral à cerimônia
fúnebre.
O cardeal viaja quilômetros de carro para visitar prisioneiros
afastados dos grandes centros urbanos, aceita mediar a greve de fome
dos encarcerados, abre suas portas a familiares e advogados que vêm
contar-lhe sobre a mais recente vítima da ditadura. O cardeal telefona
a generais e delegados, protesta junto ao presidente da República,
informa ao papa o que se passa nos subterrâneos da história do Brasil.
A ditadura agoniza e o cardeal, convencido de que não se deve repetir
nunca mais esta página da história, escreve o mais contundente relato
dos crimes do regime militar, Brasil, Nunca Mais. O livro alcança
repercussão mundial e torna-se fator de interdição, em funções
públicas, de todos aqueles que acreditavam que a liberdade se esculpe a
pauladas.
O cardeal incomoda, com o seu profetismo, a própria Igreja. Sua
arquidiocese é retalhada, restando-lhe o centro, enquanto seu coração
permanece na periferia. Seu nome é suprimido das comissões vaticanas. O
papa João Paulo II mostra-lhe o dossiê que a Cúria Romana preparara
contra ele e atira-o no lixo. O cardeal dobra-se, apanha os papéis e
pede ao papa que assine, para guardar de recordação.
O cardeal, dom Paulo Evaristo Arns, completa 80 anos no próximo dia 14.
Presenteia-nos com a sua autobiografia, Da Esperança à Utopia
testemunho de uma vida, editada pela Sextante.
https://www.alainet.org/es/node/105294?language=es
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