Charles de Foucauld, Homem de Deus
05/09/2001
- Opinión
O homem que dá título a este artigo morreu assassinado na Argélia, em 1916.
Tinha 58 anos de idade, era francês, fora oficial do Exército e comandara
as tropas de ocupação na África. Descendente de família nobre, possuía
hábitos refinados.
Aos 28 anos, converteu-se ao evangelho de Jesus. Ingressou num mosteiro
trapista, em busca de oração e solidão. O conforto monástico o incomodou. O
rigor das regras, a segurança de vida, a fartura da mesa, eram detalhes que
o faziam sentir-se distante dos pobres e, portanto, do Jesus dos
evangelhos.
Insatisfeito, Foucauld abandonou a vida comunitária e empregou-se, como
servente, no convento das irmãs clarissas, em Nazaré. Queria mergulhar na
vida oculta do jovem Jesus, sobre cujos anos pré-missionários nada se sabe,
exceto o que sugerem uns poucos relatos de infância.
Mais tarde, Foucauld retornou à Argélia, disposto a testemunhar Cristo
entre os muçulmanos. Como militar, levara submissão e repressão àquele
povo. Agora, anunciava a salvação. Obcecado pela solidão e premido pela
busca franciscana do anonimato, retirou-se para Tamanrasset, no centro do
Saara, a fim de compartilhar da vida dos tuaregues, um povo nômade e pobre.
O fundamentalismo arraigado de alguns grupos islâmicos ceifou-lhe a vida.
Monge sem convento, Charles de Foucauld pautou sua espiritualidade pelo
seguimento radical de Jesus. Costumava justificar-se: Cristo ocupou de tal
modo o último lugar, que isso ninguém consegue tirar dele.
Quase vinte anos depois de sua morte, Charles de Foucauld foi redescoberto
por outro francês, René Voillaume. Nasceu a Fraternidade dos Irmãozinhos e
Irmãzinhas de Foucauld e, na mesma linha espiritual, os Irmãozinhos do
Evangelho, que hoje se espalham pelos cinco continentes. Há também a
Fraternidade Leiga, integrada por aqueles que não fazem votos religiosos,
mas abraçam a espiritualidade do místico francês, sobretudo no serviço
anônimo aos mais pobres.
No Brasil, há irmãozinhos e irmãzinhas entre os índios Tapirapé, no
Araguaia, e nas favelas do Rio, como metalúrgicos no ABC paulista e na
periferia de João Pessoa, e em muitos outros lugares. Não costumam pregar,
não dão cursos, nem se ordenam sacerdotes. Irradiam os valores evangélicos
pelo testemunho de vida, a amizade, a integração com os núcleos
populacionais nos quais vivem e trabalham. Todos meditam pelo menos uma
hora por dia. Onde moram, há sempre uma capelinha na qual se recolhem em
oração.
Neste mês, a Fraternidade comemora a sua fundação. Sempre nutri uma ponta
de santa inveja dessa gente que escolheu a senda obscura de Nazaré. Convivi
com Chico, médico, em Belo Horizonte; com Serafim, operário, nas greves do
ABC; com as irmãzinhas de Roças Novas (MG); com Arturo Paoli, profeta de
Deus, hoje entregue à contemplação nas cercanias de Foz de Iguaçu.
Quem mais me marcou foi o irmão François, cujo carisma era ser andarilho de
Deus. Pegou carona num navio cargueiro, onde trabalhou na faxina, e
desembarcou no Rio, em 1965. Seu propósito era chegar à Serra de Piedade,
em Minas. Caminhou até Petrópolis, onde pediu hospedagem numa casa
paroquial. Ao fitar aquele homem com aspecto de mendigo, cabelos fartos,
mochila às costas e sandálias de couro cru, o padre teve medo e bateu-lhe a
porta na cara.
François dormiu no jardim defronte à igreja. Pouco depois, a polícia o
despertou, levando-o preso por vadiagem. Dia seguinte, o delegado conferiu
os documentos dele e o liberou. Não quero ir embora disse o monge para
espanto do delegado. Gostaria de ficar por aqui uns três dias, para falar
de Jesus aos presos.
Terminado o tríduo, François andou até Pedro do Rio, onde sentiu fome.
Entrou num bar de beira de estrada e indagou do dono se poderia lavar o
chão em troca de um prato feito. A proposta foi aceita. Ali, um
caminhoneiro deu-lhe carona até Belo Horizonte, onde convivemos alguns dias
no convento dominicano do bairro da Serra, antes que ele partisse para a
montanha que abriga o santuário da padroeira de Minas.
Passei anos sem notícias dele. Até que, em 1976, quando eu morava na
favela, em Vitória, ele bateu inesperadamente à minha porta. Contou que
andara por muitos países, vivera inusitadas experiências e pregara um
retiro para o papa Paulo VI. Foram dias de muita fé e afeto. Na década
seguinte, ele tomou o rumo do Céu.
Num tempo em que a religiosidade orna-se de ruídos e jogos de efeito, a
espiritualidade de Foucauld é um contraponto para quem se sente mais
evangélico no silêncio da oração, no serviço aos pobres, no anonimato
inspirado na vida oculta de Jesus em Nazaré. A busca da fama é incompatível
com a fome de Deus. Como ensinou João, o Batista, é uma arte saber
recolher-se para que Jesus possa sobressair.
https://www.alainet.org/es/node/105287?language=en
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