Amós e nós
24/07/2002
- Opinión
Comemorar o dia do agricultor (25 de julho), num país de dimensões
continentais, como o Brasil, que nunca conheceu uma reforma agrária,
implica resgatar a atualidade do passado. É significativo evocar o profeta
Amós, camponês que se tornou autor bíblico. "Sou vaqueiro e plantador de
sicômoros", definia-se ele (7,14). Viveu há vinte e oito séculos, em
Técua, num sítio próximo a Belém da Judéia.
Israel era governado pelo rei Jeroboão II (786-746 a.C.), cuja política
econômica consistia em aumentar a carga tributária, extorquindo sobretudo
os assalariados e diaristas, para favorecer as importações, endividando o
país. O Estado era rico e o povo, pobre. Pesquisas arqueológicas revelam
que, quanto mais endinheirada a nobreza, mais suntuosos os palácios da
Samaria, em contraste com a miséria dos casebres da população.
Versado em política e relações internacionais, graças ao esforço de
comercializar queijos, lã e couro nos principais mercados da região, Amós
deixou o reino do Sul, onde vivia, e dirigiu-se ao Norte. Indignado frente
à tanta desigualdade, denunciou os que "vendem o justo por dinheiro e o
necessitado por um par de sandálias" (2,6), ou seja, juízes e fiscais que
aceitavam subornos para aplicar multas que resultavam no confisco da terra
dos camponeses.
"Pai e filho dormem com a mesma mulher" (2,7), vociferava o profeta
contra
os patrões que transformavam suas empregadas em prostitutas. Os
governantes "em seus palácios entesouram violência e opressão, e não sabem
viver com honestidade" (3,10). O tempo e os recursos que as mulheres ricas
perdiam no cuidado da vaidade levaram Amós a apelidá-las de "vacas de
Basã", que "vivem em casas de marfim nos montes da Samaria, oprimem os
fracos e maltratam os necessitados" (4,1).
As autoridades e os juízes "transformam o direito em veneno e atiram a
justiça por terra" (5,7), "odeiam os que defendem o justo no tribunal e
têm horror de quem fala a verdade" (5,10). Os trabalhadores "pagam pesados
impostos, constroem casas de pedras lavradas nas quais nunca irão morar e
plantam vinhas de ótima qualidade sem jamais saborearem o vinho" (5,11).
Primeiro profeta a assinar um livro da Bíblia, Amós não tergiversava com
as
palavras. Denunciava os abastados que "deitam-se em camas de marfim,
esparramam-se em cima de sofás, comendo cordeiros do rebanho e novilhos
cevados em estábulos, cantarolam ao som da lira, bebem canecões de vinho e
usam os mais caros perfumes" (6,4-6). No comércio, "diminuem as medidas,
aumentam o peso e viciam a balança" (8,6). Os agiotas, "no templo de seu
deus bebem o vinho dos juros" (2,8).
Ainda assim, a elite revestia-se de uma religiosidade exuberante. O
profeta, entretanto, não se deixava iludir e Javé falava por suas
palavras: "Detesto as festas de vocês, longe de mim o ruído de seus
cânticos, nem quero escutar a música de suas liras. Eu quero, isto sim, é
ver brotar o direito como água e correr a justiça como riacho que não
seca" (5,21-24).
Amós criticava aqueles que enchiam a boca de discursos políticos e
religiosos e, no entanto, permaneciam indiferentes ao sofrimento do povo.
Para ele, tudo aquilo era "tão absurdo como arar o mar com bois ou encher
de pedras a pista e esperar que os cavalos corram" (6,12).
O Brasil de hoje não é muito diferente do reino de Israel há vinte e oito
séculos. O Estado reduz o patrimônio nacional, através das privatizações,
e o poder aquisitivo da população, com baixos salários e extorsivos
impostos, para destinar 65% de seus recursos aos credores internacionais.
O Orçamento Geral da União prevê, para 2000, investimentos diretos
(assistência social, segurança pública, saneamento, habitação, cultura
etc) da ordem de R$ 12,5 bilhões. Até 22 de junho gastaram-se apenas R$
419,5 milhões, ou seja, só 3,34% dos recursos destinados a melhorar as
condições de vida da população.
A reforma agrária continua uma promessa. Dados do INCRA indicam que, na
média nacional, 62,4% da área total dos imóveis rurais do país são
improdutivos. Na região Norte, são improdutivos 78,8% da área total dos
imóveis; no Nordeste, 69,5%; no Sudeste, 50,4%; no Sul, 42,6%; no
Centro-Oeste, 62,7%.
Segundo o IBGE, até maio de 2000 havia 66.820 famílias (cerca de 334 mil
pessoas) vivendo em barracas de lona do MST. Graças a este movimento,
essas famílias não se favelizam nas cidades, agravando a incidência de
crianças de rua e de violência urbana. Sem projeto para a agricultura, o
governo FHC aumentou as importações, desde 1994, em mais de 700%. Em
detrimento da produção nacional, hoje o Brasil importa milho, arroz, coco,
feijão, alpiste, pipoca, leite em pó, manteiga, queijo etc.
Entre os dias 7 e 11 de agosto, o MST realizará, em Brasília, seu 4º
congresso nacional, reunindo cerca de 10 mil agricultores sem-terra.
Estarão em debate os rumos do movimento frente ao modelo econômico imposto
pelo FMI e que, agora, faz do Brasil, revela a empresa de consultoria A.T.
Kearney, o primeiro colocado na preferência dos investidores dos EUA. Só
os fundos de investimento que aplicam via Internet deverão canalizar para
o nosso país, este ano, 2 dos 3 bilhões de dólares destinados à América
Latina.
O Brasil está à venda e, com a desvalorização do real, ficou barato para
os
estrangeiros. De janeiro a junho, foram fechados 172 negócios com a
participação de capital estrangeiro; 22% a mais que no mesmo período de
1999. O prato forte já não são as grandes empresas. São as fusões e a
aquisição de empresas de médio porte. Até a nossa fauna e a nossa flora
estão sendo tabeladas.
Ano passado, o Brasil recebeu US$ 31 bilhões de dólares e, neste ano, a
quantia não deverá ficar muito abaixo disso. Engana-se quem pensa que
trará mais saúde, educação, empregos, moradias, enfim, qualidade de vida
para o nosso povo. Os dólares entram, transformam-se em bens imóveis e
saem para financiar a dívida externa. Ficamos sem dinheiro e sem
patrimônio.
Daí a oportunidade do plebiscito que a CNBB, com apoio de movimentos
sociais, promoverá em todo o país na Semana da Pátria, para que a
população se manifeste se o governo deve ou não suspender o pagamento da
dívida e(x)terna. É a Igreja assumindo, como Amós, a sua vocação
profética, para "ver brotar o direito como água e correr a justiça como
riacho que não seca".
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Luís Fernando Veríssimo e
outros, de "O Desafio Ético" (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/105183
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