A educação do olhar
02/05/2006
- Opinión
Desde que me entendo por gente, a escola ensina análise de textos.
Graças a essas aulas, aprendi o ufanismo de "criança, jamais verás um
país como este", conheci a paixão de Tomás Antônio Gonzaga por sua Marília
e deletei-me com os poemas satíricos de Leandro Gomes de Barros, como
esses versos tão atuais, escritos no início do século: "O Brasil é a
panela/ O Estado bota sal,/ O Município tempera,/quem come é o Federal".
Todo texto tece-se com os fios do contexto em que foi escrito. Quanto
mais próximo encontra-se o leitor do contexto em que se produziu o texto,
tanto melhor capta o seu pretexto, o significado. Um alemão tem mais
condição de apreender, com a sensibilidade, o universo das obras de
Goethe, assim como um brasileiro sente o perfume da culinária descrita nos
romances de Jorge Amado.
Pra que serve estudar literatura? Entre outras razões, para ler com
mais
acuidade o livro da vida, cujos autores e personagens somos nós. Quem lê,
sabe distinguir entre arte e panfleto, jogo de rimas e poesia,
experimentalismo barato e ficção de qualidade. Ler é um exercício de
escuta e ausculta. Por isso, enquanto não chegam novos avanços
tecnológicos, tenho a impressão de que ler livro na Internet é como ver a
foto de um entardecer de maio sobre as montanhas de Belo Horizonte.
Prefiro contemplar a maravilha ao vivo.
Na adolescência tive em cine-clubes minha primeira educação do olhar.
Após a exibição do filme, havia debates, onde ficava nítida a diferença
entre obra de arte e mero entretenimento. Cultivava-se a sensibilidade,
saturada pelas sagas melodramáticas dos pastelões de Hollywood e insaciada
diante dos grandes mestres do cinema. A chatice do humor televisivo jamais
produzirá um Chaplin.
Hoje, a imagem ocupa em nossos olhos mais espaço que o texto, graças à
universalização da TV. No entanto, a escola parece não se dar conta de que
vivemos numa era imagética. Ou pior, compete com a TV em arrogante
indiferença ou desprezo. Dentro da sala de aula ainda predomina a
narrativa textual, a palavra escrita, a seqüência demarcada por início,
meio e fim, marcas da historicidade. Fora da escola, recebemos a avalanche
de imagens, o vertiginoso coquetel que embaralha passado, presente e
futuro, a narrativa implodida pelo recorte inconcluso dos clipes, a
cultura definhada em diversão vazia.
Enquanto a escola se esforça, ao menos teoricamente, para formar
cidadãos, a TV forma consumidores. Se, hoje, os alunos são mais
indisciplinados que outrora, é porque não podem - ainda - mudar o
professor de canal... Por que não destronar a TV como rainha do lar e
levá-la para a sala de aula? Chegou a hora de nos emanciparmos do
tirânico monólogo televisivo. Pode-se discordar de um jornal e escrever à
seção de cartas dos leitores ou protestar no rádio, ligando para a
emissora. Como queixar-se à televisão, uma concessão pública utilizada em
função de interesses e lucros privados? O melhor recurso é inverter a
relação: ela passa a ser objeto e, nós, sujeitos.
Imagino os alunos em sala de aula analisando programas de TV e clipes
publicitários; transformando o jogo de emoções - fotos, sons, movimentos -
em objeto da razão, decodificando os conteúdos dos programas e a
carpintaria da produção televisiva. Atores e produtores de TV seriam
recebidos em salas de aula; a qualidade dos produtos ofertados conferida;
abrir-se-ia o debate sobre a "ética" implícita nos programas de auditório,
onde pobres e nordestinos são ridicularizados, e na publicidade, que reduz
a mulher a seus atributos físicos como isca de consumo.
Ver TV na escola e educar o olhar. E, assim, dar importante passo rumo
à
democratização dos meios de comunicação, pois instituições de ensino
também devem ter suas rádios comunitárias e produzir vídeos. Só um olhar
crítico abre-nos o horizonte da cidadania e da democracia real. Caso
contrário, corremos o risco de ver cada vez mais caras e menos corações,
acreditar que a predominância da estética dispensa ética e crer que os
sonhos são apenas casulos que não geram borboletas da utopia.
https://www.alainet.org/es/node/105171
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