A criança é um brinquedo erótico
15/10/2000
- Opinión
O título acima é uma citação de Freud em sua "Contribuição à psicologia do amor
II", de 1912. Eros é o princípio da ação, da vida e do amor. As palavras, no
entanto, sofrem de corrupção etimológica. Hoje, erotismo é sinônimo de
pornografia e de lucros biliardários.
Em setembro, a polícia italiana descobriu uma máfia de vídeos russos, negociados
pela Internet, cujas imagens mostram crianças sexualmente violentadas. O acervo
continha mais de 50 mil fotos. Os pedófilos pagavam de US$ 400 a US$ 6.000 por
um vídeo ou DVD, identificados por códigos. Os produtores já tinham obtido um
lucro superior a US$ 600 milhões, e sua clientela preferencial encontrava-se nos
EUA, na Alemanha e na Itália.
Os "atores" eram seqüestrados em orfanatos, circos e parques públicos e levados
para os estúdios. Os vídeos mais baratos mostram crianças que não sabiam que
estavam sendo filmadas. Os mafiosos as conduziam a uma loja de roupas e,
seduzidas pelos presentes, elas experimentavam peças de vestuário em cabines
focalizadas por câmaras ocultas. As gravações mais caras exibem crianças
violentadas e torturadas até a morte!
Na mesma semana em que a rede de pedófilos foi desbaratada na Itália, o senado
dos EUA, interessado em deter a onda de vandalismo nas escolas, convocou os
executivos de Hollywood para exigir deles um projeto capaz de reduzir a
violência nas produções cinematográficas. Relatório da Comissão Federal do
Comércio acusou a indústria de entretenimento de oferecer a crianças filmes,
músicas e jogos eletrônicos recheados de violência.
"The New York Times" denunciou, em 27/9, que Hollywood utiliza crianças de 9 e
10 anos como cobaias para testar produções proibidas a menores de 17 anos,
exceto quando acompanhadas dos pais ou responsáveis. Mel Harris admitiu que a
Columbia Pictures, controlada pela Sony, agiu mal ao testar o filme "O quinto
elemento" numa platéia de adolescentes.
A Hollywood Pictures, controlada pela bucólica Disney, reconheceu que testou o
filme "O juiz", estrelado por Sylvester Stallone e vedado a menores, numa
platéia de cem jovens de 13 a 16 anos. A MGM e a United Artists exibiram
comerciais de filmes de terror, restritos a menores, a mais de 400 jovens com
idade entre 12 e 18 anos.
A Columbia Tristar contratou pesquisadores para entrevistar crianças de 9 a 11
anos, a fim de avaliar como deveria prosseguir o filme "Eu sei o que vocês
fizeram no verão passado", baseado num conto de terror que descreve assassinatos
brutais. Na platéia da versão original do filme predominavam crianças de 10
anos.
Todo filme americano chega ao mercado envolvido numa poderosa campanha de
marketing, que vai muito além dos freqüentadores de salas de cinema. Segundo o
relatório do senado, de 44 filmes com classificação R (inadequado para menor de
17 anos), 80% tinham estratégia de marketing voltada para o público jovem. Todas
as 55 gravações musicais com a mesma classificação tiveram publicidade centrada
em menores de 17 anos.
Ainda que a criança não possa ser admitida na sala de cinema, ela poderá
consumir produtos, como brinquedos e videogames, vinculados ao filme. E com
certeza saciará sua curiosidade através de vídeo ou DVD. Ou no dia em que a TV,
ignorando os princípios elementares da ética, projetar o filme sem restrições de
idade. Eis a razão por que as produções cinematográficas, como os capítulos de
telenovelas, são submetidos a sessões-teste desde as primeiras cenas.
Freud explica. Muitos homens tendem a dissociar afeição e sensualidade. Amam a
quem não desejam e desejam a quem não amam. Neles o vigor sexual só se
manifesta, segundo Freud, frente ao "objeto sexual depreciado", como a
prostituta ou a mulher de condição social, intelectual ou etária inferior à
dele.
Isso vale para a criança como objeto do desejo ou "brinquedo erótico", pois é um
ser indefeso, incapaz de oferecer resistência ao adulto que se sente impotente
diante de outra pessoa adulta e, sobretudo, inseguro num mundo de mulheres
emancipadas que não dissociam atração e afeto.
A sociedade neoliberal, fundada na competitividade e no êxito egolátrico,
favorece o desamor, pois instaura concorrência onde deveria haver solidariedade
e, em se tratando de riquezas, aumenta a acumulação engendrando a exclusão. Na
impossibilidade de mercantilizar o afeto, ela acena à libido.
Basta observar uma banca de revista, um programa humorístico na TV ou uma peça
publicitária. Ali a mulher é reduzida a seus contornos anatômicos, tão desnuda
de roupas quanto de princípios, idéias e valores. Mero objeto descartável, cujo
realce promove uma deseducação do olhar, de tal modo que passa a ser vista como
um atraente naco de carne exposto no açougue virtual.
Essa cultura da glamourização das formas, que enriquece as academias de
ginástica e os cirurgiões plásticos que se prestam aos caprichos da vaidade,
deteriora as relações de alteridade. Mulheres e homens que não correspondem ao
modelitos imperantes são marginalizados, condenados a purgar seus complexos no
limbo dos que não merecem afeto por não terem suficientes atrativos.
Pedófilos, tarados, estupradores e assassinos de mulheres são regados pelo caldo
de cultura dessa sociedade neoliberal que só reconhece os valores do mercado
financeiro, pois troca o coração pelo bolso e suprime a ética em nome da
estética. E o mais grave é que insistem em nos convencer que liberdade de
expressão é a TV invadir os nossos lares, intoxicando crianças com pornografia
e violência.
https://www.alainet.org/es/node/105169
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