Paulo Freire e a einvenção do Brasil

29/05/2001
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Neste maio, faz quatro anos que o educador Paulo Freire transvivenciou. Em terra de desmemorização programada, os mortos precisam arrancar a cegueira dos olhos dos que se negam a um pingo de auto-estima tupiniquim. É dado aos jovens o inelutável direito de virar este país de cabeça pra baixo e desvendar seus intestinos. "O Brasil não conhece o Brasil", cantava Elis Regina. Mimético, talvez o brasileiro tenha vergonha do que é, a julgar pelo modo como trata o que tem. Tem, por exemplo, um poder popular. Com exceção de Cuba, que vive em outro sistema, nenhum país da América Latina alcançou o nível de organização popular que existe hoje no Brasil. Uma imensa malha de movimentos sociais espalha-se pelo território nacional. A CMP (Central de Movimentos Populares) articula centenas deles. A CUT representa 18 milhões de trabalhadores. O MST gira a roda da vida em 1.500 assentamentos. O PT governa, hoje, três estados e 111 municípios; congrega 2023 vereadores, 88 deputados estaduais, 60 deputados federais e 8 senadores. E pode eleger Lula presidente da República em 2002. Quem gerou esse poder popular? Se me fosse pedido um nome, uma pessoa capaz de resumir tantas conquistas, eu não relutaria: Paulo Freire. Claro, a história não depende de um homem. Óbvio, sem homens e mulheres não há história. Sem Paulo Freire não haveria esses movimentos que tiram o sono da elite brasileira. Porque ele nos ensinou algo de muito importante: encarar a história pela ótica dos oprimidos. Os excluídos como sujeitos políticos Ao deixar a prisão, em fins de 1973, achei que toda luta aqui fora tinha acabado. Todos os grupos armados tinham sido desarticulados pela repressão, e os que não empunharam armas, como o PCB, estavam sendo recolhidos às cadeias. E agora, José? Até porque todos nós, que tínhamos a pretensão de ser os únicos entendidos em luta social, estávamos na cadeia, mortos ou no exílio. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar uma imensa rede de movimento populares pelo Brasil afora. Quando o PT foi fundado, em 1980, vi gente da esquerda comentar: "Operários? Não. É muita pretensão operários quererem ser a vanguarda do proletariado. Somos nós, intelectuais teóricos, que conhecemos o marxismo, a ciência da história, que temos capacidade para dirigir a classe trabalhadora". No entanto, neste país os oprimidos se tornaram, não só sujeitos históricos, mas também lideranças políticas, graças ao método Paulo Freire. Certa vez, num país da América Latina, cujo nome prefiro omitir, o pessoal de esquerda perguntou-me: ‹Como fazer aqui algo parecido ao processo de vocês lá no Brasil? Porque vocês têm um setor de esquerda na Igreja, um sindicalismo combativo, o PTŠ Como se faz isso? ‹Comecem fazendo educação popular ­ respondi -, e daqui a trinta anos... Aí azedou a conversa. ‹Trinta anos é muito! Queremos para três meses. ‹Para três meses eu não sei ­ observei - mas para trinta anos sei a receita. Ou seja, embora haja muitos cristãos nesse processo, nada caiu do céu. Tudo foi construído com muita tenacidade. O método Paulo Freire Conheci o método Paulo Freire em 1963. Eu morava no Rio de Janeiro, integrava a direção nacional da Ação Católica. Ao surgirem os primeiros grupos de trabalho do método, engajei-me numa equipe que, aos sábados, subia para Petrópolis, para alfabetizar operários da Fábrica Nacional de Motores. Ali descobri que ninguém ensina nada a ninguém, a gente ajuda as pessoas a aprenderem. O que fazíamos naquela fábrica? Fotografamos as instalações, reunimos os operários no salão de uma igreja, projetamos diapositivos e fizemos perguntas absolutamente simples: ‹Nesta foto, o que vocês não fizeram? ‹Bem, não fizemos a árvore, a mata, a estrada, a águaŠ ‹Isso que vocês não fizeram é natureza - dissemos. ‹E o que o trabalho humano fez? ­ indagamos. ‹O trabalho humano fez o tijolo, a fábrica, a ponte, a cercaŠ ‹Isso é cultura - dissemos. ‹E como é que essas coisas foram feitas? Eles debatiam e respondiam: ‹Foram feitas na medida que os seres humanos transformaram a natureza em cultura. De repente, aparecia uma foto com o pátio da Fábrica Nacional de Motores, com muitos caminhões e bicicletas dos trabalhadores. Perguntavámos: ‹Nesta foto, o que vocês fizeram? ‹Os caminhões. ‹E o que possuem? ‹As bicicletas. ‹Como, vocês não estariam equivocados? ‹Não, nós fabricamos os caminhões... ‹E por que não vão para casa de caminhão? Por que vão de bicicleta? ‹Porque o caminhão custa caro, e não pertence a nós. ‹Quanto custa um caminhão? ‹Cerca de 40 mil dólares. ‹Quanto você ganha por mês? ‹Bem, eu ganho 60 dólares. ‹Quanto tempo você precisa trabalhar, sem comer nem beber, economizando todo o salário, para um dia ser dono do caminhão que faz? E aí eles começavam a calcular. As noções mais elementares do marxismo vulgar vinham pelo método Paulo Freire. Com a diferença de que não estávamos dando aula, não fazíamos o que Paulo Freire chama de Œeducação bancária¹, que visa enfiar noções de política na cabeça do trabalhador. O método era indutivo. Mais tarde, vi por aí muitas pessoas escolarizadas, como eu, dando aulinhas para operários, achando que faziam a cabeça da massa. Linguagem popular Quando cheguei a São Bernardo do Campo, em 1980, havia uns grupinhos de esquerda que distribuíam jornal no meio das famílias dos trabalhadores. Dona Marta chegava pra mim e indagava: ‹O que é "contradição de crasse"? ‹Dona Marta, esqueça isso. ‹Não sou de muita leitura ­ justificava-se ela - porque a minha vista é ruim e a letra pequena. ‹Esqueça isso ­ eu dizia. ‹Isso a esquerda escreve para ela mesma ler e ficar feliz, achando que está fazendo revolução. Paulo Freire ensinou-nos, não só a falar em linguagem popular, mas também a aprender com o povo. Ensinou o povo a resgatar sua auto-estima. Culturas distintas e complementares Ao sair da prisão, fui viver cinco anos numa favela no Espírito Santo. Lá trabalhei com educação popular no método Paulo Freire. Ao retornar a São Paulo, no fim dos anos 70, Paulo Freire propôs darmos um balanço da nossa experiência em educação e, graças à mediação do jornalista Ricardo Kotscho, produzimos o livro intitulado "Essa escola chamada vida" (Ática). É o seu relato como criador do método e educador, e da minha experiência como educador de base. Neste livro conto que, na favela em que eu morava, havia um grupo de mulheres grávidas do primeiro filho, assessoradas por médicos do Ministério da Saúde. Perguntei aos médicos por que mulheres do primeiro filho. ‹Não queremos mulheres que já tenham vícios maternais ­ disseram -, queremos ensinar tudo. Pois bem, passado uns meses, bateram na porta do meu barraco. ‹Olha, Betto, estamos querendo uma ajuda sua. ‹Mas por que ajuda minha? ‹Há um curto-circuito entre nós e as mulheres Elas não entendem o que falamos. Você, que tem experiência com esse povo, podia vir dar uma ajuda. Fui assistir ao trabalho deles. Ao entrar no Centro de Saúde do morro, fiquei assustado, porque eram mulheres muito pobres e o Centro estava todo enfeitado com cartazes de bebês Johnson, loirinhos, de olhos azuis, propaganda de Nestlé e outras coisas. Diante do visual do Centro, falei: ‹Está tudo errado. Quando as mulheres entram aqui e olham para esses bebês, percebem que isso é outro mundo, não tem nada a ver com os bebês do morro. Assisti ao trabalho deles e percebi logo que eles falavam em FM e as mulheres estavam sintonizadas em AM. A comunicação realmente não funcionava. Numa sessão o doutor Raul explicou a importância do aleitamento materno para formação do cérebro, porque o ser humano é um dos raros animais, talvez o único, cujo cérebro nasce incompleto. Ele só se completa três meses depois do nascimento, graças às proteínas do aleitamento materno. Doutor Raul explicou tudo isso cientificamente. As mulheres o fitavam como eu olho quando abro um texto de chinês ou árabe: não entendo nada. ‹Dona Maria, a senhora entendeu o que o doutor Raul falou? ­ perguntei. ‹Não, eu não entendi, só entendi que ele falou que o leite da gente é bom para cabeça das crianças. ‹E por que a senhora não entendeu? ‹Porque não tenho estudo. Fui muito pouco na escola, nasci pobre na roça. Então eu tinha que trabalhar e ajudar no sustento da família. ‹Dona Maria, por que o doutor Raul soube explicar tudo isso? ‹Porque ele é doutor, é estudado. Ele sabe e eu não sei. ‹Doutor Raul, o senhor sabe cozinhar? ­ indaguei. ‹Não, nem café sei fazer. ‹Dona Maria, a senhora sabe cozinhar? ‹Sei. ‹Sabe fazer frango ao molho pardo (que no Espirito Santo, e também em algumas áreas do Nordeste é chamada de galinha de cabidela)? ‹Sei. ‹Levanta aí ­ pedi - e conta pra gente como se faz um frango ao molho pardo. Dona Maria deu uma aula de culinária: como se mata o frango, de que lado se tiram as penas, como preparar a carne e fazer o molho etc. Ela sentou e eu falei: ‹Doutor Raul, o senhor sabe fazer um prato desse? ‹De jeito nenhum, até gosto, mas não sei. ‹Dona Maria ­ conclui - a senhora e o doutor Raul perdidos numa mata fechada, e um frango, ele, com toda cultura dele, morreria de fome e a senhora não. A mulher abriu um sorriso de orelha a orelha, porque descobriu, naquele momento, um princípio fundamental de Paulo Freire: não existe ninguém mais culto do que o outro, existem culturas distintas, socialmente complementares. Se pusermos na balança toda minha filosofia e teologia, e a culinária da cozinheira do convento em que vivo, ela pode passar sem minha filosofia e teologia, mas eu não posso passar sem a cultura dela. Essa é a diferença. Resgatar a teoria e a prática de Paulo Freire é arrancar o povo brasileiro da ilusão das elites, do medo do poder, da indolência frente a um futuro que pode e deve ser transformado, já que o presente só é muito bom para aqueles que têm pavor de Paulo Freire.
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