Comunidade, o espaço é seu

19/08/2014
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 A comunicação comunitária nasceu de uma luta dos movimentos populares, que exigiam a criação de espaços no rádio e na televisão para falar com e para a comunidade. Esta demanda surgiu, principalmente, pela falta de pluralidade e diversidade existentes na radiodifusão comercial.
 
No Brasil, a lei que instituiu a radiodifusão comunitária é de 1998. Contudo, ela já nasceu com características restritivas, limitando o seu alcance e, consequentemente, o seu potencial para democratizar a comunicação.
 
Em 16 anos de vigência, esta regulação não contempla grande parte das demandas da população. “Embora colocada como um avanço por algumas organizações, a lei de radiodifusão comunitária no Brasil é feita para não dar certo”, denuncia o coordenador executivo da Amarc (Associação Mundial de Rádios Comunitárias) no Brasil, Daniel Fonseca.
 
Segundo ele, além dos entraves burocráticos para conseguir uma outorga, as rádios não alcançam o público esperado. “Há um entendimento do conceito de comunidade territorial, ou seja, alcance de 1 quilômetro de raio [restrição da cobertura das rádios feita a partir da antena transmissora] e isso não dá conta, por exemplo, de que uma comunidade rural do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) possa ter uma rádio”, afirma.
 
A Lei nº 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, vale registrar, estabelece que a potência máxima de uma rádio comunitária deve ser de 25 watts. O decreto 2.615/98, por sua vez, limita o alcance a um raio de no máximo 1 km de distância a partir da antena de transmissão.
 
Atualmente, há no Brasil de 4.613 rádios comunitárias com licença para funcionamento (dados da Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações). Por outro lado, a Polícia Federal já fechou mais de 10 mil rádios e outras 20 mil aguardam na fila para obter uma licença.
 
Outra dificuldade que a lei impõe ao funcionamento das rádios, apresentada pelo coordenador da Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária), José Sóter, é a existência de apenas um canal de frequência fazendo com que, muitas vezes, ocorra interferências entre as rádios.“Com isso, há um prejuízo muito grande com as zonas de intersecção desses sinais, causando interferência e impossibilitando as pessoas de ouvirem ambas”, relata.
 
Criminalização
 
“O Estado e a estrutura do Poder Judiciário podem condenar uma prática que a sociedade não condena?”, questiona o radialista comunitário Jerry de Oliveira, que recentemente deixou o Movimento Nacional de Rádios Comunitárias (MNRC). Ele foi condenado pela Justiça por intervir no fechamento de uma emissora comunitária em Campinas (SP).
 
Para Jerry, que trabalha na Noroeste FM, a radiodifusão comunitária e as rádios livres são direitos fundamentais garantidos na Constituição e “qualquer outra legislação ou marco regulatório que os impeçam de funcionar agride este direito”. O ativista conta que já presenciou diversas ações violentas promovidas pela Polícia Federal durante o fechamento de rádios comunitárias que não tinham licença para funcionar.
 
“A pessoa coloca uma rádio comunitária no ar para ajudar a comunidade, mas vai a Polícia Federal com suas metralhadoras e viaturas e levam o indivíduo como se ele fosse um bandido da pior espécie”, conta o radialista comunitário.
 
Um exemplo da truculência nestas intervenções é o da piauiense Maria da Conceição de Oliveira que, em 2005, teve um infarto fulminante após uma ação da Anatel e da Polícia Federal na rádio em que atuava, em Teresina.  
 
“Só a presença das viaturas da polícia já chocam. São milhares de casos de perseguições inclusive com torturas física e mental em algumas pessoas. É lamentável que isso aconteça em plena democracia. Isso é inadmissível”, expressa o radialista comunitário.
 
Daniel Fonseca também reconhece o aumento da repressão contra as comunidades. “A Anatel, a Polícia Federal e até mesmo o Ministério Público, têm agido de forma articulada para coibir a operação de radiodifusão comunitária”. Ele denuncia um comunicado emitido pela Anatelno mês de fevereiro no qual afirma-se que, “para garantir a viabilidade das comunicações para a Copa do Mundo de 2014”, haveria uma fiscalização mais proativa e contundente para que as rádios comunitárias não prejudicassem a infraestrutura e o funcionamento das comunicações durante o evento esportivo..
 
Em resposta, o capítulo brasileiro da Amarc, com o apoio outros movimentos sociais em defesa da democratização dos meios de comunicação, enviou uma manifesto em repúdio à atitude da Anatel.
 
De acordo com a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão (PDFC), Márcia Morgado, os cidadãos que sofreram algum tipo de repressão podem recorrer ao órgão a fim de intervir em algumas situações. “Essa práticanão pode ser permitida de forma alguma. Acho que o grande papel do Ministério Público é esta intermediação entre os dois lados: a sociedade civil e as autoridades para que se possa entrar num consenso e verificar que essas violações não podem continuar ocorrendo”, declarou.  
 
Estrangulando pelo bolso
 
As restrições para o funcionamento das rádios comunitárias não se limitam apenas aos aspectos técnicos. A legislação também proíbe a publicidade comercial de qualquer ordem nestas emissoras, referindo-se ao “apoio cultural” como fonte de financiamento para as rádios.
 
Este apoio seria uma espécie de patrocínio, que impede qualquer promoção de bens, produtos, preços, condições de pagamento, ofertas, vantagens e serviços, acarretando dificuldades de sustentabilidade para as rádios comunitárias de seus países.
 
“A sustentabilidade econômica fica seriamente prejudicada com a proibição de publicidade, muitas vezes colocando as rádios em situação de penúria financeira e que, comumente, acaba por torná-las dependente de interesses extracomunitários, como poderes religiosos e/ou políticos locais, num processo que vem descaracterizando a radiodifusão comunitária no Brasil”, avalia documento elaborado pela organização Artigo 19, em conjunto com a Amarc, sobre a situação das rádios comunitárias no Brasil.
 
Fé e política
 
A crescente ocupação das rádios comunitárias por igrejas e políticos é visível, apesar de ser proibida pela lei: “É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária”. De acordo com o coordenador da Abraço “atualmente, quem mais se apropriou das emissoras de rádio são as instituições religiosas, a maioria evangélicas”, cita.  
 
Sóter faz um alerta para o “monopólio” das rádios comunitárias por instituições religiosas. “Quando perguntamos para estas emissoras qual a relação dos associados, mostram 15 nomes. Com esse número de pessoas não dá nem para montar a direção. Esta é uma característica de uma microempresa disfarçada de entidade associativa”, salienta.     
 
O proselitismo político presente nas rádios é outro aspecto lembrado por Jerry. “A Noroeste FM demorou 14 anos para ser autorizada, justamente porque não quisemos nos aliar a políticos”.Para ele, esta situação acontece devido aos modelos de concessão existentes no país. “Isso fica claro quando vemos várias emissoras sendo autorizadas a partir da intervenção de deputados. Para eles soa natural usurpar uma concessão de rádio”, argumenta.
 
Daniel Fonseca informa que esta prática também ocorre em outros países. “Existe um processo de captura de veículos comunitários na América Latina, que até têm autorização para funcionar, mas ao invés de estar a serviço da comunidade pertencem a algum grupo que apoia um político, por exemplo”.
 
Tevês também têm vez
 
Há dez anos no ar, a experiência da tevê comunitária em Caxias (RS), mostra como a comunidade pode se beneficiar ao usufruir e integrar este mecanismo garantido pela lei nº 8.977, de 6 de janeiro de 1995, dentro do canal a cabo.
 
O presidente da TV Caxias afirma que apesar das dificuldades, em especial a falta de recursos, procura-se manter a qualidade e diversidade da programação para conquistar credibilidade e aumentar a audiência.
 
Segundo ele, o país dispõe de um canal comunitário nacional por satélite que poderá ser utilizado pelas tevês comunitárias. “Havia uma resistência [em liberar o sinal] por parte de grandes companhias de telecomunicação, como a SKY, mas estamos vencendo”, destacou. Pozenato acrescenta que a iniciativa conta com o apoio da ABCCOM (Associação Brasileira dos Canais Comunitários).  

A iniciativa, em sua avaliação, trará maior visibilidade ao setor: “Se juntarmos o número de assinantes [da tevê a cabo], mais os que têm acesso via satélite, teremos um grande público potencial”.
 
Cadê os movimentos?
 
Na opinião de Sóter, uma forma de coibir esta ação seria se houvesse maior envolvimento do movimento social nas rádios e tevês comunitárias. “As organizações tinham que participar deste processo e assumir essa conquista pela qual lutaram”, critica. “São pouquíssimos os exemplos de entidades que se organizaram e tomaram a direção de uma rádio. Já que temos dispositivos legais, por que não usamos?”, questiona.
 
O presidente da TV Caxias, no Rio Grande do Sul, Pedro Pozenato, concorda com Sóter que o espaço para as mídias comunitárias precisa ser melhor utilizado pelos movimentos.

“Falta no movimento social e, particularmente, no sindical, uma visão mais avançada em relação à comunicação comunitária, para que se apropriem destas ferramentas disponíveis”, afirma Pozenato.
 
A luta continua
 
Se fosse possível fazer uma fotografia que mostrasse o atual cenário da radiodifusão comunitária hoje, no Brasil, esta foto provavelmente seria a de rádios sendo fechadas de forma truculenta pela Polícia Federal ou de dezenas de milhares de processos de concessão aguardando um parecer do Ministério das Comunicações. Este cenário indica a necessidade de muito mais luta e pressão para que este instrumento de comunicação legítimo da sociedade seja garantido pelo Estado.
 
Em meio a todos estes desafios, os meios comunitários continuam buscando formas de financiamento, de não serem criminalizados, além de diversificarem a sua grade de programação para atrair o interesse do público.

Inúmeras reivindicações são encaminhadas pelo movimento social para alterar este cenário da radiodifusão comunitária, entre elas, a luta para mudar a lei. Na avaliação de Sóter, apesar da comunicação comunitária ser reconhecida como instrumento democratizante da sociedade, “os parlamentares não conseguem enfrentar o oligopólio da comunicação”.
 
“Já se passaram quatro períodos legislativos e não conseguimos mudar uma vírgula sequer desta lei”, expressou o coordenador da Abraço. A organização participa da campanha pela coleta de assinaturas do Projeto de Lei da Mídia Democrática, de Iniciativa Popular, já que o texto do PL inclui as alterações necessárias na legislação do setor.
 
“Só tem um jeito de fortalecer a comunicação comunitária: o engajamento da sociedade civil. Sem o reconhecimento que temos uma ferramenta à disposição e de que existe, legislativamente, um espaço conquistado, não tem jeito: temos que nos apoderar dele”, conclui Pedro Pozenato.  
 
Audiência Pública
 
No próximo dia 28 de agosto ocorrerá, na Procuradoria Regional da República, em São Paulo, uma audiência pública com o tema “Rádios Comunitárias: Desafios e Perspectivas”. Confira a programação completa aqui.
 
- Érika Cecconi, para a série especial do Barão de Itararé
 
Entre 5 de agosto e 5 de outubro, data marcada para as eleições de 2014, o Barão de Itararé publicará, às terças e quintas-feiras, reportagens especiais abordando temas ligados à comunicação que, geralmente, são excluídos do debate eleitoral. A reprodução é livre, desde que citada a fonte. Saiba mais sobre a iniciativa aqui.
 
19 Agosto 2014
 
https://www.alainet.org/es/node/102637

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