Os abutres contra a soberania argentina
11/08/2014
- Opinión
Presidência da Argentina
Governo Cristina Kirchner
declara guerra aos “fundos abutrese
reacende o debate: qual o limite
para o capital especulador?
declara guerra aos “fundos abutrese
reacende o debate: qual o limite
para o capital especulador?
UM MÊS APÓS a equipe de Messi e companhia sair derrotada do Maracanã e ver o sonho do tricampeonato da Copa do Mundo ser adiado por mais quatro anos, outra equipe portenha toma as manchetes pelo mundo: a de Cristina Kirchner. O adversário, porém, não são 11 alemães, mas um time mais ambicioso: o de fundos abutres.
A história começa no final de 2001, quando a Argentina passava por grandes dificuldades e teve cinco presidentes em 12 dias. Adolfo Rodríguez Saá, que foi eleito pela Assembleia Legislativa e governou o país por uma semana, declarou uma moratória de cerca de 100 bilhões de dólares.
Em 2005, o presidente Néstor Kirchner abriu uma rodada de renegociações da dívida com os credores. Esse processo, que aconteceu também em 2010, é chamado de “swap da dívida”. Os governos convocam seus credores para trocar suas dívidas por outras, fazendo com que o país fique livre para captar mais recursos no mercado. À época, 93% dos credores aceitaram a renegociação com remuneração entre 45% e 70% da dívida.
Porém, a situação se complicou este ano, quando o juiz da corte de Nova Iorkque Thomas Griesa acatou a decisão que obriga o governo a pagar os títulos na íntegra aos 7% dos credores restantes que não aceitaram o acordo com o governo, os chamados fundos holdouts, ou abutres, da NML Capital – do magnata estadunidense Paul Singer –, da Aurelius, da Blue Angel e de mais 15 credores.
No último dia 30 de junho, a decisão bloqueou o pagamento de 539 milhões de dólares do governo argentino aos credores. O valor só será liberado quando houver um acordo ou o pagamento integral do 1,3 bilhão de dólares que os fundos abutres contestam na Justiça.
Há de se mencionar ainda que o governo argentino nunca recebeu dinheiro deles diretamente por meio da compra de títulos – o que eles fazem é agir no mercado secundário comprando dívidas de alto risco de não serem pagas para, então, forçar na Justiça
“Bobagem atômica”
Após isso, o governo de Cristina Kirchner se pronunciou contrário ao que o mercado está dizendo ser um novo calote nos credores. O ministro da Economia, Axel Kicillof, considera “uma bobagem atômica” dizer que o país entrou em default enquanto a presidente criticou os fundos dizendo que “está na hora de o mundo colocar freios nos abutres e bancos insaciáveis que querem seguir lucrando com uma Argentina quebrada e doente”.
O economista argentino Ramón Garcia Rodrigues, coordenador do bacharelado em Ciências Econômicas da UFABC, concorda ser um contrassenso chamar o que está acontecendo hoje de calote, já que o governo está pagando rigorosamente em dia os compromissos acertados com os credores e analisa, também, que essa questão não afeta a economia de modo significante.
“O país hoje continua como estava, bem ou mal. Essa briga afeta a economia real de maneira desprezível, por mais que os adversários do governo e os holdouts queiram semear o pânico”, apontou.
Além disso, Garcia Rodrigues questiona a decisão do juiz já que o governo não tinha nenhum tipo de acordo firmado com os fundos nas renegociações das dívidas nos anos anteriores.
“Você, por definição, não pode dar um calote nos holdouts, porque não chegou a nenhum acordo com eles. Esses fundos têm títulos que sofreram um default em 2001 e nunca renegociaram o pagamento dos mesmos. A decisão dele não faz o menor sentido. Muitos economistas, jornalistas, políticos, alguns deles completamente contrários ao governo, reconhecem que foi uma decisão perigosa para a arquitetura financeira internacional”, criticou.
Em entrevista ao site GGN, o ex pesquisador sênior do Banco Central argentino, Matías Vernengo, aponta que a decisão de Griesa abre precedentes perigosos na economia mundial por colocar em dúvida a possibilidade dos países periféricos de reestruturar suas dívidas.
“O critério normal de reestruturação de dívidas é a condição ou capacidade do devedor de pagar. Dito de modo simples, melhor receber algo do que nada. A decisão reduz a margem de manobra para o uso das reservas internacionais, o que afeta a soberania nacional e a independência do banco central de um país endividado”, aponta.
Soberania
A posição intransigente dos fundos, de acordo com Garcia Rodrigues, fez com que grande parte do mercado finaneiro mundial, entre eles os próprios bancos, ficassem do lado do governo argentino. Além disso, a ONU já declarou que a decisão do tribunal afeta a soberania do país.
O episódio reacende um debate sobre os limites de atuação do mercado financeiro na compra das dívidas dos países. Por sua vez, para Vernengo, a simples proibição de compra das negociações nos mercados secundários não é a saída, mas ele defende a reformas das instituições financeiras existentes, como o FMI.
“O que seria necessário realmente são instituições dos países devedores mais organizadas, como as dos países credores, que permitissem negociar em melhores condições. A ideia de um fundo que empreste dinheiro quando o país tem um déficit estrutural nas contas externas é boa, mas o FMI impõe condições que fazem desse empréstimos uma armadilha. A questão não é eliminar o FMI, mas reformá-lo”, aponta.
A percepção de que a Argentina está dando um calote, no entanto, de nada tem de inocente de acordo com o professor Garcia Rodrigues. Ele aponta que um dos fundos abutres faz parte do comitê da Associação Internacional de Swaps e Derivativos (ISDA, em inglês). Os holdouts podem receber 1,3 bilhão de dólares caso consigam receber do governo a íntegra dos títulos.
A cláusula “Rufo”
A grande questão que pode fazer a dívida argentina pular de 1,3 bilhão de dólares para mais de 100 bilhões de dólares é a chamada cláusula de Direito Sobre Ofertas Futuras (Right Upon Future Offers, em inglês). Garcia Rodrigues explica que ela não permite que a Argentina ofereça aos fundos abutres melhores acordos do que os outros 93% aceitaram nas negociações passadas. “Essa cláusula é muito sensata. Imagine que eu deva 10 mil para você e para o João. Eu digo para você que não posso pagar todo o valor e você aceita que eu só te pague 6 mil. Mais tarde você fica sabendo que eu paguei os 10 mil pro João. Por que você vai se dar mal por ser um cara cordato, e João, por ser um chato inflexível, recebe tudo? Se todos somos inflexíveis, não há mais negociações quando alguém vai à falência, algo normal no capitalismo e para o que há ampla legislação em todos os países, seja para empresas ou para pessoas”, argumenta.
Vernengo aponta que o Banco Central do país tem como arcar com os valores dos fundos abutres, mas que um acordo hoje pode fazer a dívida de 1,3 bilhões de dólares pular para mais de 100 bilhões de dólares, pois teria que oferecer acordo semelhante aos outros 93 % dos credores.
“Para pagar diretamente aos fundos abutres há dinheiro, o Banco Central tem por volta de 28 bilhões de dólares. O problema é que os detentores dos títulos reestruturados teriam o direito de reclamar, uma vez que uma das cláusulas da reestruturação da dívida é que ninguém teria um tratamento privilegiado e receberia melhores condições dos que aceitaram os novos termos da dívida. Nesse caso, os efeitos de ter que pagar aos fundos abutres podem ser bem maiores do que simplesmente a dívida direta com eles”, explicou.
Ramón declara que não é a favor de que o governo “empurre a dívida e pague integralmente os 1,3 bilhão de dólares dos fundos beneficiados com a decisão de Griesa para se livrar dos abutres”, mas que isso pode acabar sendo a única saída.
“Países latino-americanos estão menos sensíveis aos fundos do que em outros tempos”, diz economista
A América Latina sofreu, na década de 1990, uma sequência de grandes crises em governos neoliberais do continente. Ataques especulativos como o do México em 1994, a subvalorização do real no Brasil em 1999 e, por fim, o calote argentino da dívida em 2001 provocaram efeitos dramáticos na maioria das economias do continente.
O economista argentino Ramón Garcia Rodrigues acredita que hoje esse cenário mudou: os países latino-america nos não estão mais tão sensíveis a ataques especulativos como na última década e já pensam em alternativas independentes para as respectivas economias.
“Veja que nos anos neoliberais houve várias crises financeiras, e agora há anos que não há nenhuma. Que país suspendeu os pagamentos da dívida nestes últimos dez anos? Te dou dois exemplos na Argentina: quando acabou o governo de De la Rua, que continuou as políticas de Menem, o desemprego era de quase 25%. Hoje está por volta de 7%. Além disso, hoje se o governo precisar mexer no câmbio, ele pode, não está mais fixado por lei no “um a um”. Isso matava as chances de fazer qualquer política econômica independente. Com tudo isso, finalmente, acho que os Brics estão mostrando que há outras maneiras de tocar o capitalismo que não seja a submissão ao cassino internacional”, explicou.
Antes da cúpula do Mercosul, o chanceler argentino Héctor Timerman se pronunciou pedindo que os países se mobilizassem para uma reforma no sistema financeiro mundial que “impeça as ações” dos fundos especulativos.
Ramón pontua as diferenças entre as que ele considera dificuldades econômicas atuais no continente, como no caso da Venezuela, para as “graves crises” da Europa, como na Espanha, Grécia, Itália. “No caso do Maduro, há passeatas populares de apoio ao governo. Você viu muitas pessoas nas ruas apoiando os cortes do [primeiro-ministro espanhol] Rajoy?”, questiona
- Bruno Pavan, de São Paulo (SP)
12/08/2014
https://www.alainet.org/es/node/102381
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