Brasil aprova uma das leis mais avançadas do mundo para o setor

Marco Civil da Internet

10/04/2014
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
O dia 25 de março de 2014 será lembrado, não apenas no Brasil, como o dia do Marco Civil da Internet. Nesta data, após cerca de três anos de tramitação, a Câmara dos Deputados brasileira aprovou um projeto de lei que, além de contrariar interesses econômicos poderosos, ao garantir direitos dos cidadãos e cidadãs, aponta claramente para o tratamento da comunicação como um direito fundamental e não apenas como uma mercadoria. Trata-se de uma perspectiva inédita na história brasileira e de uma das raras legislações do mundo no campo da internet que cria mecanismos de proteção do usuário – e não o contrário.
 
Neste sentido, o Marco Civil da Internet, que nasceu por sugestão da sociedade civil e foi construído de forma colaborativa, com ampla participação popular, poderá servir de modelo para todas as democracias que buscam reforçar a liberdade e os direitos humanos nas redes.
 
Entre as diversas garantias trazidas pelo texto, as mais significativas estão expressas nos artigos 9, 19 e 7 do projeto.
 
O artigo 9, visto como o coração do projeto, protege a neutralidade de rede. Ou seja, o tratamento isonômico de quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. Isso significa que quem controla a infraestrutura da rede tem que ser neutro em relação aos conteúdos que passam em seus cabos. Isso impede, por exemplo, que acordos econômicos entre corporações definam quais conteúdos têm prioridade em relação a outros. Ou então, que o acesso à Internet passe a ser comercializado como a TV a cabo, onde você só acessa o conteúdo pelo qual pagou previamente, num claro pedagiamento da rede.
 
Não à toa, as maiores operadoras de telecomunicações do país estavam contra o projeto, visando liberdade total para seus modelos de negócios e a imposição de condições assimétricas para o consumidor, criando uma internet dos ricos e outra dos pobres. Seu maior representante na Câmara dos Deputados, o deputado Eduardo Cunha, líder do PMDB, durante meses impediu a votação do texto. Felizmente, a neutralidade de rede foi mantida, preservando a continuidade da Internet como um ambiente em que todos se equivalem independentemente de seu poder econômico.
 
Outro avanço do Marco Civil foi a garantia da liberdade de expressão dos usuários na rede. Hoje a velha e boa censura, que aterrorizou o Brasil durante a ditadura militar, se transformou em uma prática privada recorrente na internet. Com receio de serem responsabilizados pelo que foi publicado por terceiros em suas páginas, provedores simplesmente tem retirado conteúdos do ar. Assim, autoridades que não gostam de críticas públicas ameaçam processar por difamação, por exemplo, um provedor que hospeda um blog. Ou corporações da indústria cultural notificam o Youtube para a retirada de conteúdos que utilizem obras protegidas por direito autoral.
 
Se por um lado pode parecer justo punir difamadores ou quem usa indevidamente obras protegidas, por outro, a avaliação sobre o conteúdo publicado não pode ser feita unilateralmente. Com a aprovação do Marco Civil, essa indústria de censura privada automática, que desrespeita qualquer processo legal ou direito de defesa de quem divulgou os conteúdos questionados, tenderá a se desmontar. Isso porque o artigo 19 do projeto retira a responsabilidade dos sites sobre os conteúdos gerados por terceiros, acabando com a insegurança jurídica. Provedores só serão responsabilizados se não cumprirem uma ordem judicial contra um conteúdo.
 
Por fim, o Marco Civil avança na proteção à privacidade dos usuários na rede, assegurando a inviolabilidade da intimidade e da vida privada e o sigilo do fluxo e das comunicações privadas armazenadas na rede. Lamentavelmente, a privacidade se transformou em uma mercadoria na internet. Geralmente, nos diversos serviços gratuitos utilizados na rede, o produto a ser comercializado é o próprio internauta, na forma dos seus dados mais íntimos. Plataformas utilizam informações pessoais e os dados gerados pelo comportamento do usuário para então vendê-los a empresas interessadas no padrão de consumo da população – ou a governos que monitorem a movimentação política de seu país ou de outros. O ex-agente da NSA, Edward Snowden, por exemplo, revelou ao mundo que a agência de espionagem estadunidense monitorava a comunicação privada de cidadãos de forma massiva e com a colaboração de empresas de tecnologia e infraestrutura.
 
Com o Marco Civil da Internet, empresas brasileiras ou que atuam no Brasil terão que desenvolver mecanismos para permitir que o que escrevemos nos e-mails só seja lido por nós e pelos destinatários das mensagens. O mesmo artigo 7o da lei assegura o não fornecimento a terceiros de nossos dados pessoais, registros de conexão e de aplicação sem o nosso consentimento, colocando na ilegalidade a cooperação das empresas de internet com departamentos de espionagem de Estado. A lei não impedirá Google e Facebook de venderem informações, mas define que isso deve ser autorizado de forma livre, expressa e informada pelos usuários.
 
Essas e outras medidas de proteção da privacidade são fragilizadas pelo único problema significativo de todo o Marco Civil: o artigo 15, que compromete a privacidade ao obrigar que empresas guardem por seis meses, para fins de investigação, todos os dados de aplicação (frutos da navegação) gerados na rede. O artigo inverte o princípio constitucional da presunção de inocência ao aplicar um tipo de grampo em todos os internautas. A obrigação da guarda de dados também gera a necessidade de manutenção de todos esses dados em condições de segurança, sobrecarregando sites e provedores de encargos econômicos. O alto custo poderá levar à comercialização desses dados.
 
Organizações da sociedade civil que se posicionaram contra este aspecto do texto buscarão agora a alteração deste aspecto do texto, que ainda precisa passar pelo Senado Federal e pela sanção da Presidenta da República. Afinal, se Dilma Rousseff foi às Nações Unidas exigir soberania e privacidade para suas comunicações, não pode repetir uma brecha deste tamanho para a vigilância dos internautas brasileiros. Vale destacar que o governo Dilma foi um poderoso aliado do projeto. Sem este apoio decisivo, o projeto ainda poderia estar na longa fila de leis importantes para o país à espera de votação no Congresso Nacional.
 
Entre erros e acertos do texto, o balanço certamente é positivo. E por isso os internautas e defensores da liberdade de expressão, que construíram o Marco Civil da Internet e atuaram persistentemente, nas redes e no Parlamento, para vê-lo aprovado, seguirão alertas. A pressão econômica das operadoras de telecomunicações e interesses políticos provocados pelas eleições presidenciais no Brasil, que acontecem em outubro, podem colocar esta conquista a perder. A democracia não é um sistema em que as coisas se resolvem facilmente. Mas agora o Brasil conta com uma lei que cria condições para a construção de um caminho no qual finalmente podemos seguir livres. E isso não é pouca coisa.
 
- Bia Barbosa e Pedro Ekman, coordenadores do Intervozes, Brasil.
 
* Texto publicado na América Latina em Movimiento, n º 494 - http://www.alainet.org/publica/494.phtml
 
https://www.alainet.org/en/node/84728
Subscribe to America Latina en Movimiento - RSS