Canasvieiras quer expulsar os mendigos

09/12/2013
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Buscando as raízes da palavra mendigo, diz-se que vem do indo-europeu ‘men-’ (pensar) e ‘dhe-’ (por, colocar), mais o verbo latino ‘facio’ (fazer), no qual o prefixo ‘de-’ significa carecer (de-fecto). Vem daí também a origem do significado real que foi dado a palavra. Nos tempos muito antigos, mendigo era aquele que carecia de algumas funções mentais, o louco, ou ainda os que tinham alguma deficiência física. Sem que ninguém quisesse arcar com eles, viviam como caminhantes, esperando pela compaixão das gentes.
 
Nas sociedades antigas, como na Grécia, por exemplo, havia aqueles que decidiam por vontade própria, viver na rua, daquilo que encontrassem. Era os cínicos. E já naquele tempo eram bastante criticados por isso. Outros, como Francisco de Assis, chegaram a fundar ordens religiosas, compostas por medicantes. Viver de esmolas para dedicar mais tempo as coisas espirituais. Também, no seu tempo, eram rechaçados, chamados de loucos, apartados da vida social. Só mais tarde Francisco virou santo mas, quando vivo era um pária. Seria expulso da praia de Florianópolis se aqui vivesse.
 
Hoje, os mendigos já não são só aqueles que tem deficiência , ou cínicos, ou religiosos. São os que não conseguem permanecer dentro da bolha de “consumo” capitalista. Assim, os empobrecidos, os que não tem trabalho, os abandonados, os que caíram em algum vício, os desgraçados, os excluídos, os que não conseguem ganhar o pão do dia, são os que vivem nas ruas, esperando a compaixão das gentes.
 
Mas, no mundo coloridos do capitalismo selvagem não há espaço para compaixão. Aquele que não é igual só consegue fomentar o medo. Assim, os que, por algum motivo, conseguem se manter na bolha da vida “normal”, que é ter um emprego, um pequeno negócio, uma casa para morar, passam a olhar com desconfiança os que não tem. Sentem medo, nunca compaixão. E, para purgar o sentimento de medo, atacam. Preferem tirar do alcance das vistas aqueles que, de alguma forma, são a denúncia viva de uma sociedade falida.
 
Os gregos, que são a base da cultura ocidental já diziam: o ser é, o não-ser não é. Ou seja. Só existe aquele que é igual. O diferente, não-é, logo, deve ser exterminado. Foi essa lógica que sustentou a matança dos indígenas no chamado “novo mundo”, que permitiu a escravidão dos negros, e que vem sustentando o extermínio de todos aqueles que não estão enquadrados nos cânones da “normalidade” social. Não é sem razão que um morador de rua tenha sido condenado a cinco anos de prisão por estar portando pinho sol e água sanitária num dia de protesto no Rio de Janeiro, ou que o pedreiro Amarildo tenha sido barbaramente assassinado numa favela carioca. Outros tantos exemplos poderíamos colar aqui: o desordeiro, o black bloc, o grevista, o pichador, o crítico. É diferente? Crucifiquem-no!
 
Por isso não é de surpreender a passeata feita no bairro de Canasvieiras, em Florianópolis, pedindo a expulsão dos mendigos e dos viandantes da praia. Comunidade praieira, turística, já há muitos anos virou o destino preferido da classe média alta argentina e brasileira. Ali abundam os hotéis, as propriedades protegidas e os negócios medianos. Ou seja, reduto da pequena burguesia, sempre tão cruel, tentando escalar a montanha da riqueza, custe o que custar. A essa gente, tão afeita em subir no contexto social, em acumular riquezas, as criaturas mal-vestidas, sem trabalho e, muita vezes drogadas ou alcoolizadas, são muito mais do que uma ameaça. Elas acabam sendo uma espécie de espelho às avessas. O horror do qual todos querem escapar. Por isso reagem tão mal. Alguns desses seres podem sim ser bandidos, ou ladrões, ou monstros, mas a maioria é formada por gente que, por algum motivo, não consegue penetrar na roda do mundo normótico. Ou seja, criaturas iguais a nós, só que desprovidas dos meios para ganhar a vida. Daí que deambulam pela cidade, esperando a compaixão daqueles que são seus iguais, humanos. Mas, por detrás das janelas, os olhos assustados que observam os viandantes não conseguem os ver como iguais, ao contrário, são os não-seres. Então, o grito: expulsem, crucifiquem!
 
Enrique Dussel, criador da filosofia da libertação fez um exercício bem simples usando a velha máxima grega “o ser é, o não-ser não-é” que nos governa. Para que a gente se liberte desse axioma racista e discriminatório há que caminhar a partir de outro. E ele o inventou. Disse: “o ser é, o não-ser é real”. E isso muda tudo. Se aquele que não é igual a mim é real, significa que eu não posso simplesmente dizer: matem-no, crucifiquem-no! Tenho de enfrentar essa diferença, olhar nos olhos, compreender. A partir daí outras práticas humanas podem ser possíveis.
 
Esse é um trabalho gigante que temos de cumprir. Mudar os axiomas, transformar a filosofia, destruir todo o edifício cultural que perdura por mais de dois mil anos. Não é coisa fácil. Mas, o fato de não ser fácil não significa que não possa acontecer. Nesse sentido, talvez o grande trabalho que precisa se cumprir é o de alfabetizar a pequena burguesia de Canasvieiras sobre isso. Mostrar que os mendigos não são necessariamente um perigo. São pessoas que precisam ser compreendidas no seu contexto. Muito mais perigoso por ser o traficante bem vestido, o playboy estuprador ou o milionário assassino que se hospeda nos hotéis de luxo da praia e tem muito dinheiro no bolso. Mas, que, às vezes, por parecer igual, passa batido.
 
A sanha raivosa contra o pobre não é coisa de hoje. Parece ser “normal” bater no que está no chão. É mais fácil “malhar o judas” do que enfrentar a dura verdade que o velho Marx já apontava: no capitalismo, para que um viva outro tem de morrer. Os poucos “manifestantes” que sairam pelas ruas de de Canasvieiras querem seguir pela via mais curta. Destruir o que lhes dá medo. Precisam saber que não adianta. O sistema ao qual seguem e no qual querem ascender sempre vai produzir mais e mais excluídos. Logo, esse, serão um exército. Quem sabe, aí, tudo mude! …
 
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