Os Suspeitos de Costume e o Inimigo Interno
- Opinión
Justamente no momento em que o país toma conhecimento, chocado, das gravações de Joesley, incitadas por procuradores amigos de Janot, as quais revelam intenção de se fazer uma devassa ilegal até no próprio STF, justamente no dia em que o Procurador Geral da República se desmoraliza por estar inegavelmente associado a essa tentativa torpe e irresponsável, o que acontece?
A renúncia do procurador? Uma investigação séria e profunda sobre esses fatos que denunciam uma gravíssima crise institucional no Brasil? Talvez uma ofensiva de investigações sobre o bunker milionário de Geddel? Não, nada disso.
O que acontece, com a costumeira pompa e circunstância, é o anúncio, por parte desse mesmo procurador, de uma nova acusação vazia e sem provas contra o PT, que fica equiparado, na peça de ficção orquestrada num perfeito timing político, a uma “organização criminosa”. Também com o mesmo e estranho timing político surge a delação de Palocci, trombeteada a quatro ventos pela imprensa golpista como a bala de prata (mais uma) contra o PT. Coincidência? Pouco provável. Como bem disse o ex-chanceler Celso Amorim: não acredito mais em coincidências, acredito em teorias da conspiração.
Conspiração ou não, trata-se, com certeza, de típica manobra diversionista. Nessas circunstâncias em que governo e o MP foram colocados em constrangedora defensiva, o PT e seus dirigentes funcionam como “the usual suspects”, os suspeitos de costume, referência ao filme clássico “Casablanca”. No final do filme, o herói, interpretado por Humphrey Bogart, mata o major nazista que queria impedir a fuga de Victor Laszlo, chefe da resistência tcheca. Para livrá-lo da acusação e desviar a atenção, o amigo de Bogart no filme, o simpático, porém cínico policial francês Louis Renault manda prender “os suspeitos de costume”.
Num outro diapasão, mais trágico, pode-se argumentar também que o PT desempenha, na ideologia neoudenista e protofascista que tomou conta do Brasil, o mesmo papel que os judeus cumpriam na Alemanha nazista: é o "inimigo interno" que justifica as piores barbaridades, que desvia a atenção dos crimes das oligarquias, que fundamenta a implantação de uma agenda que destrói o Brasil.
Hannah Arendt argumentava que, nos regimes totalitários ou no estado de exceção que os antecedem, o adversário passa a ser definido não por ações políticas concretas ou eventuais delitos específicos, mas pelo simples fato de “ser”. Vira inimigo a ser exterminado pelo simples fato de existir. Vira organização criminosa sem crime.
A coisa está ficando complicada? Acuse-se o PT de qualquer coisa. A nossa mídia-Goebbles se encarregará de desviar a atenção da opinião pública dos verdadeiros culpados da crise.
Com efeito, essa parece ser a intenção do procurador que, na nova peça vazia apresentada, uma compilação de delações sem provas antigas, intenta criminalizar, em manobra de prestidigitação, a história do partido mais comprometido com as causas do povo do Brasil e todo um projeto político dedicado a incluir os historicamente excluídos num país para todos.
Mas, afinal, o que causa tanto ódio? Quais os graves crimes que o PT cometeu para ser perseguido dessa forma? Seria por que teriam achado, nas casas de seus dirigentes, malas de dinheiro com as que acharam no bunker do Geddel? Seria por que seus dirigentes teriam sido gravados pedindo dinheiro destinado a enriquecimento pessoal ou à compra de silêncio para notórios corruptores, como aconteceu com Aécio e Temer? Seria por causa das “pedaladas fiscais” que Dilma fez para manter os programas sociais que beneficiavam os mais pobres?
Não, não é por isso. Esse discurso hipócrita e falso já tem dificuldade de enganar até o mais cego dos “paneleiros”. A essa altura, a maioria já começa a perceber que o golpe contra Dilma e o PT foi dado, entre outros motivos, para ressuscitar a derrotada agenda neoliberal e circunscrever as investigações de corrupção aos “suspeitos de sempre”.
O problema é que essa tentativa de circunscrição “aos suspeitos de sempre”, essa transformação do PT no grande “inimigo interno”, só funciona com a criminalização da atividade política. De fato, como não há malas de dinheiro e gravações comprometedoras, como tem, em abundância, no que tange a outros partidos, não havia e não há maneira de tentar criminalizar o PT a não ser forçando delações premiadas de acusados em desespero e rotulando de “propinas” doações eleitorais legais. Em consequência, tiveram de criminalizar as próprias eleições e a atividade política como um todo. Bem que tentaram, mas com essa lógica não conseguiram preservar os partidos conservadores, até mesmo porque a relação entre esses partidos e as nossas oligarquias corruptoras são históricas e estreitas.
Assim, a estratégia dos “suspeitos de sempre” colocou sob suspeita todo o mundo político. Desqualificaram o voto popular, jogaram no lixo 54,5 milhões de votos, destituíram a presidente honesta e, com o auxílio de uma Lava Jato nitidamente partidarizada e equivocada, retiraram toda a credibilidade e legitimidade do sistema de representação.
Com isso, o Brasil mergulhou numa crise política sem precedentes, que já se transformou numa crise institucional que paralisa o país.
A obsessão de destruir o “inimigo interno” está destruindo, na realidade, o próprio país. Sua economia, seus empregos, seus programas sociais, seu Estado de Bem-Estar, seu patrimônio, sua soberania, tudo, enfim, se esfarela na crise político-institucional na qual afundaram o Brasil.
A agressão maior, contudo, é à democracia e ao Estado de Direito. Com o golpe e a criminalização da política, o processo decisório foi transferido do sistema de representação para um consórcio formado pela mídia oligopolizada, o grande capital, principalmente o grande capital financeiro, e procuradores messiânicos, os quais, com um moralismo à la Savonarola, atuam como Átila, o Huno. Por onde passam, a grama dos investimentos e dos empregos não cresce mais. A dos direitos e garantias individuais também,
Todas as instituições democráticas estão em crise profunda.
Antes, o Poder Judiciário estava relativamente preservado. Agora, a crise de credibilidade também o atinge. Atinge até o próprio STF. Nem as procuradorias escapam. As trapalhadas e as ilegalidades das delações de Joesley et caterva mostram uma instituição à deriva, que serve mais à fogueira das vaidades de seus dirigentes do que à República.
O Brasil vive atualmente numa democracia sequestrada. Sequestrada pelos interesses dos que lucram com a agenda ultraneoliberal imposta sem um único voto. O Estado perdeu sua autonomia relativa e sua função de intermediação de interesses diversos, algo vital numa democracia de verdade. As instituições, fragilizadas e em crise, apenas “carimbam” as decisões do “mercado”.
Quem ganha com isso?
Ganham aberrações políticas como Bolsonaro, aventureiros “apolíticos” como Doria, rentistas, banqueiros e as oligarquias predadoras que sempre lucraram com a extinção dos direitos dos mais pobres. O resto do Brasil perde. E perde feio. Até mesmo os setores mais esclarecidos do empresariado, que produzem para o mercado interno e dependem da ação do Estado percebem agora que estão perdendo.
Mas quem ganha mesmo, e muito, é quem está comprando o Brasil a preço de banana. Esse pessoal está nadando de braçada na crise. Nunca ninguém comprou reservas provadas de petróleo a preço tão baixo, praticamente uma doação. Nunca ninguém haverá de comprar nióbio, ouro, tântalo e outras riquezas minerais da Amazônia a preços tão convidativos. Jamais alguém haverá de comprar energia hidrelétrica, já amortizada, por valores tão aviltados. De brinde, ainda podem levar as nossas terras e a Casa da Moeda.
São grandes negociatas que se descortinam à Nação. Muita gente vai ganhar rios de dinheiro. Surgirão daí os novos “geddeis”, os novos “cunhas”. Novos bunkers em novos apartamentos receberão muito mais malas. Dessa vez, com dólares e euros, como nas privatizações da década de 1990.
Isso escandaliza? Não, isso é normal. O que escandaliza é o “triplex” que Lula nunca teve.
A transformação da antiga sexta economia mundial, respeitada no plano internacional, numa republiqueta de bananas e numa plataforma colonial dependente interessa. A destruição do Brasil e da sua democracia interessa.
Algum dia a ficha vai cair: ao transformarem o PT no “suspeito de sempre” e no “inimigo interno”, entregaram o Brasil aos culpados de sempre e ao inimigo externo.
Parafraseando Bogart, acho que esse não é o começo de uma bela amizade.
- Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado.
7 de Setembro de 2017
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