Fernando Martinez (1939 – 2017), meu irmão cubano
- Opinión
Na manhã de segunda-feira, 12 de junho, recebi de minha querida amiga, Esther Pérez, casada com Fernando Martínez Heredia, tradutora de meus textos em Cuba, a triste notícia de que seu companheiro nos deixara naquela madrugada, acometido de um infarto agudo.
Todos nós, brasileiros e brasileiras solidários à Revolução Cubana, somos gratos ao testemunho de vida e à brilhante obra ensaística de Fernando.
Conheci-o à raiz da Revolução Sandinista, quando nós dois assessorávamos a Frente Sandinista de Libertação Nacional e, no meu caso, também as Comunidades Eclesiais de Base daquele país. Cientista social altamente qualificado, Fernando se deixou impactar, como tantos comunistas cubanos, pelo vigor revolucionário da fé de militantes cristãos irmanados aos sandinistas ateus para derrubar, em 1979, a ditadura da família Somoza.
“Conheci Frei Betto” – disse Fernando ao saudar-me por ocasião da entrega do título de Doutor Honoris Causa que recebi, em 2015, da Universidade de Havana – “em uma noite de janeiro de 1980, em um encontro sandinista de educação popular, numa montanha próxima a Manágua. Conversamos muito, e nasceu entre nós a amizade (...). Na manhã seguinte, no café da manhã, ele me disse ao ouvido: ‘Acredito em você’. Nossa amizade se converteu em irmandade, e assim tem sido até hoje.”
Militante do Movimento 26 de Julho, graduado em Direito, Fernando dirigiu, a partir de 1966, o Departamento de Filosofia da Universidade de Havana, o que explica o fato de ter sido escolhido para proferir o discurso de minha titulação.
Nele se uniam o militante e o pensador, o revolucionário e o criterioso cientista social. Tinha o raro dom de unir, em sua vida, seu gramsciano vínculo orgânico com os movimentos populares e o rigor científico em suas análises, sempre atento a deixar que a prática questionasse e enriquecesse a teoria.
Fernando gostava de uma boa conversa, e tivemos inúmeras em todas as minhas dezenas de visitas a Cuba, além de encontros no Brasil e em outros países do continente. Mirava o interlocutor como se cuidasse para não perdê-lo de vista. Falava em tom moderado, porém incisivo, sem jamais proferir uma frase impositiva. Nunca discordava frontalmente. Preferia encarar a questão por outra óptica, como quem procura enriquecer o diálogo e não apenas contradizer o interlocutor. Ao indignar-se sorria, e ao sorrir seus olhos pareciam se espichar. Porém, ao criticar algo contrário a seus princípios fazia com a boca um Ó mudo para manifestar sua estupefação e discordância.
Com a revista Pensamento Crítico, que fundou e dirigiu, soube contribuir para evitar em Cuba o dogmatismo marxista. Além de assessorar a Revolução Sandinista à raiz de seu êxito, colaborou com a Revolução Bolivariana. Desdobrou-se por toda a América Latina, socializando seus conhecimentos com os movimentos sociais do Brasil, onde se manteve muito próximo do MST, da Argentina, de El Salvador e de tantos outros países.
Fernando exerceu destacado papel na construção da ponte que aproximou a Revolução Cubana da Teologia da Libertação e da obra pedagógica de Paulo Freire, com quem ele e Esther criaram laços de familiaridade.
Ao receber, em janeiro de 1989, em Havana, um grupo da Teologia da Libertação, e indagado se depois da publicação de Fidel e a religião os comunistas cubanos ainda insistiam no tema do ateísmo, Fernando retrucou: “Não gostamos de nos chamar de ateus, porque soa entre o insulto e o ridículo.”
Quando assumi a direção, em companhia de Claudia Korol, da revista latino-americana America Libre, Fernando se tornou um de nossos principais colaboradores, ao lado de Eduardo Galeano, Atilio Boron, Pablo González Casanova e tantos outros.
Fernando articulava brilhantemente o pensamento marxista com a obra de José Martí, e atualizava esse legado a partir das experiências da Revolução Cubana e das práticas revolucionárias e populares encontradas na América Latina nas últimas cinco décadas. Elegante no modo de manifestar suas ideias, conciso no discurso oral, profundo no texto escrito, Fernando desconcertava os marxistas ortofônicos que sabem apenas ecoar a ortodoxia doutrinária; os ateus preconceituosos, cegos ao caráter dialético da religião; os teóricos e acadêmicos descolados da prática social; e os ativistas entusiásticos arredios à reflexão teórica de suas práticas.
Embora tenha nos deixado uma obra de valor inestimável, toda ela pode ser resumida no título de um de seus mais importantes trabalhos, Exercício de pensar, que presenteei a Raúl Castro em dezembro de 2008, insistindo na importância de sua leitura frente aos novos desafios da Revolução Cubana desde que Fidel deixara o poder.
A Feira do Livro de Havana merecidamente homenageou Fernando em fevereiro de 2009.
O legado teórico e prático de nosso irmão haverá de enriquecer e fortalecer as novas gerações de revolucionários e militantes da utopia libertadora.
Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.
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