As leis do orçamento e o superávit primário
- Opinión
A cegueira em perseguir uma meta de superávit primário irrealizável só encontra justificativa na lógica pura, estreita e egoísta do financismo.
A amplitude da crise político-institucional que o Brasil vem atravessando ao longo de todo esse ano tem provocado consequências graves também no que se refere ao andamento das matérias orçamentárias no interior do Congresso Nacional.
Até o presente momento, estão parados na Comissão Mista do Orçamento (CMO) os 3 projetos de peças legislativas que são essenciais para a orientação das regras, das condutas e dos valores relativos ao Orçamento Geral da União para o ano que vem. Trata-se do Plano Plurianual 2016-2019 (PPA), da lei de Diretrizes Orçamentárias para 2016 (LDO) e da própria Lei Orçamentária Anual 2016 (LOA).
Esses projetos devem ser votados pelo plenário do Congresso Nacional em tempo hábil para viabilizar o encaminhamento das políticas públicas ao longo do ano seguinte. É por isso que a própria Constituição Federal estabelece prazos bem definidos. A LDO deve ser votada até 17 de julho do ano anterior ao período do orçamento e a LOA deve ser votada até o encerramento do ano legislativo (22 de dezembro). Caso essas datas não sejam cumpridas, o Congresso Nacional não pode entrar em recesso.
Orçamento distante do debate amplo na sociedade.
Um fato que merece ser estudado com mais profundidade é a pouca preocupação concreta manifestada pela sociedade civil organizada para com as definições do orçamento em nosso País. E esse desinteresse em influenciar no processo não é de hoje, vem de longe. Afinal, são documentos essenciais para definir o modelo de estrutura social e de economia que pretendemos organizar. Mais do que isso, o orçamento concretiza as prioridades que devem ser conferidas à massa de recursos arrecadados sob a forma de tributos e outras fontes de receita do Estado.
Revestidos de um verniz de tecnicalidade incompreensível para a absoluta maioria dos leigos, os debates a respeito do orçamento e das finanças públicas terminam por se restringir a um pequeno círculo de especialistas no assunto e de lobistas muito bem remunerados e preparados pelos diversos ramos dos grandes conglomerados econômicos. Porém, é fundamental que os demais setores passem a ser mais atuantes sobre a definição de tais prioridades, que devem envolver áreas como saúde, educação, previdência, investimentos estratégicos, entre tantas outras.
Um dos aspectos mais importantes no debate da questão orçamentária refere-se à definição das condições gerais da conjuntura econômica e das premissas relativas às variáveis mais relevantes da economia. É o caso, portanto, do ambiente que se projeta para a inflação, a taxa de juros, a política monetária, a política fiscal, a situação internacional, entre outros. Esses aspectos são importantes para a tentativa de projetar o ritmo da atividade econômica que se espera para 2016, por exemplo. Esse contexto vai ser fundamental para a definição da capacidade de arrecadação de tributos - condição “sine qua non” para a efetivação das receitas esperadas. Que por sua vez é a base para a realização dos programas e projetos previstos no orçamento.
Armadilha do superávit primário.
Um dos temas que mais empolga o debate político atual é justamente a definição das regras da política fiscal. O fato é que os sucessivos governos brasileiros, desde a edição do Plano Real, têm se comprometido de maneira firme e decidida pela obtenção de superávit primário. Isso significa a incorporação para dentro do próprio aparelho de Estado de uma inteligente armadilha criada pelo sistema financeiro internacional. Por meio do superávit primário, o governo se compromete a obter um resultado positivo em suas finanças públicas. Ou seja, ele orientará a política econômica para que as receitas sejam superiores às despesas ao longo de um determinado exercício.
Ora, em uma primeira abordagem tudo parece bem lógico e coerente, não? Afinal, responsabilidade fiscal significa cuidar de forma adequada das finanças públicas e impedir o surgimento de déficits exagerados na contabilidade entre receitas e despesas estatais. O problema, no entanto, reside no verdadeiro pulo do gato introduzido, de forma sutil e safada, pelo adjetivo “primário”. Aqui, já não se trata mais apenas de uma conta superavitária entre todas as despesas e receitas do governo. Vejamos com calma.
O conceito de superávit primário retira as despesas de natureza financeira do cálculo. Bingo! Vamos reduzir ao máximo as despesas públicas para buscar um excedente de receitas sobre os gastos, mas os valores atribuídos para o pagamento de juros são intocáveis. Neles não se mexe. Assim, o governo que se arranje para cortar da saúde, da educação, da previdência, da habitação, dos investimentos. Mas os R$ 520 bilhões que foram gastos ao longo dos últimos 12 meses com os juros da dívida pública não podem ser diminuídos. Tudo em nome da tal “credibilidade do mercado”, seja lá o que isso possa significar.
No caso concreto da discussão atual, as regras orçamentárias explicitam de forma bem objetiva as prioridades que o governo pretende oferecer para a sociedade no ano que vem. O Ministro da Fazenda mantém a sua rota inalterada do austericídio e chantageia às claras. Se a CMO não aprovar uma meta de 0,7% para o superávit primário, Joaquim Levy tem afirmado que não vê mais sentido em sua presença na equipe de Dilma.
Bolsa Família ou juros da dívida?
A disputa política se evidencia nas manobras dos parlamentares. O Relator do Orçamento, deputado Ricardo Barros (PP-PR), declara que para manter tal espírito de responsabilidade fiscal seria necessário cortar R$ 10 bilhões no Programa Bolsa Família. Parte da base aliada percebe o risco político de tal atitude irresponsável e o líder do governo na Comissão, deputado Paulo Pimenta (PT-RS), resolve apresentar uma emenda propondo superávit primário zero para 2016 e manter os programas sociais.
A cegueira em perseguir uma meta de superávit primário irrealizável só encontra justificativa na lógica pura, estreita e egoísta do financismo. Dane-se o País, dane-se a maioria da população, dane-se a produção de bens e serviços. O ajuste fiscal conservador deve ser realizado a fórceps e as contas da austeridade devem ser jogadas nas costas de todos os setores, à exceção do sistema financeiro. Isso significa manter a SELIC nas alturas, assegurar os ganhos especulativos com as operações dos swaps cambiais e não diminuir o volume de gastos do orçamento com a destinação de recursos para o sistema financeiro a título de juros da dívida pública.
A polêmica a respeito das leis orçamentárias ilumina bem essa questão e define os campos políticos e ideológicos. Vivemos uma recessão provocada pela tolice em forma de tragédia proporcionada pelo austericídio. As receitas tributárias do Estado estão em queda e o fundamental na política econômica deve ser a busca da retomada do crescimento da economia. E isso significa priorizar as despesas do governo nas políticas que reduzam os efeitos da crise social e estimulem a produção e o emprego.
Manter superávit primário sob tais condições sinaliza para reduções perversas como essa do Bolsa Família e sugere o adiamento, ainda para mais longe no horizonte, das perspectivas da recuperação da atividade e do emprego. Se o Executivo e o Congresso Nacional desejam mesmo projetar um Brasil forte em termos estratégicos, devem zerar o superávit primário e reduzir a importância do financismo na determinação dos rumos da Nação. Isso significa diminuir a parcela das rubricas financeiras no Orçamento, que já deverão consumir mais de 49% do bolo total previsto para 2016.
- Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Fuente: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/As-leis-do-orcamento-e-o-superavit-primario/7/35186
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