As narrativas dos protestos e seus impactos

Um selfie pela democracia

É uma contradição ir a um protesto com uma agenda própria, mas graças às redes sociais esse crime político tem se espalhado.

20/08/2015
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
 fotobrasil
-A +A

No domingo, 16 de agosto, mais uma vez os movimentos apolíticos foram para as ruas fazer política. Era menor a massa se comparada ao primeiro semestre. Mas, o debate sobre os números não interessa agora (quando crescia o número de participantes, contá-los importava, agora que reflua, contá-los não importa).

 

Este artigo é exatamente sobre isso: não há como o governo ou os setores de esquerda vencerem a disputa pela narrativa. Porque as regras e os critérios vão mudar de acordo com o interesse do mais forte e encontrar formas próprias para criticar a esquerda, o PT e a atual situação do Brasil. Pior: a narrativa hoje se limita às bandeiras ligadas aos privilégios e aos preconceitos das classes que se fazem dominantes; não por acaso, mas porque aparentam representar os interesses dos próprios dominados.

 

Na neurolinguística, o processo de formação da narrativa é amplamente estudado. Parte-se do suposto de que a realidade é múltipla. E, se a quer manipular, basta mostrar o que interessa e obscurecer o que não favorece a perspectiva escolhida. Naquilo que se propõem os grandes conglomerados midiáticos e da comunicação, nenhuma novidade e nenhuma inovação. Mas, funciona.

 

Muitos dos que estão nas ruas hoje são os mesmos que chamavam o Lula de bêbado ou analfabeto enquanto era presidente. São os mesmos que chamam Dilma de vaca sem o menor pudor ou consideração sobre a ofensa. Como nem uma coisa nem outra foi efetiva, agora os acusam de corruptos. Os mesmos que acusavam o PT de incompetência porque nos primeiros anos de governo os programas sociais ainda não funcionavam, agora acusam o partido de assistencialista.

 

E os que agora bradam sobre a corrupção na Petrobras são os mesmos que defendiam a privatização da empresa e agora lamentam a lapidação do patrimônio nacional. Os mesmos que defendiam o espetáculo da democracia quando tudo era neoliberalismo, agora pedem o retorno do regime militar.

 

As narrativas construídas pelos dominadores servem para justificar a opinião do sujeito político e não para entender o que está em jogo. Porque precisam esconder o que realmente importa: as relações de poder que estruturam as formas de dominação.

 

É latente a luta entre dominadores e dominados. Com algumas poucas novidades: políticos e empresários sendo presos, regras e procedimentos ajustados, acesso aberto ao antes restrito, trabalhadores exigindo direitos, transparência e responsabilidade sendo exigidas aos quatro ventos, minorias sem vergonha de lutar pelos seus direitos, acusações de preconceitos de maiorias…

 

No final, as novidades detonam os incômodos das elites e se as panelas, luzes e buzinas não são o suficiente pra parar esse governo, sair às ruas vem com a força de um fenômeno inédito.

 

Vejamos que curioso nesse despertar: por que protestar aos domingos? Por que transformar o ato em uma grande festa? Por que transformar as ruas em uma grande passarela?

 

Os trabalhadores, aqueles que têm a semana fatigada pela rotina pesada do dia a dia, não se animam para perder o domingo empunhando cartazes. Talvez os mais jovens ainda se animem. Só quem tem condições sociais mais favoráveis não se importa de ir ao centro da cidade no domingo para protestar, empunhar cartazes, dançar e proferir palavras de ordem.

 

Mas, divulgam-se outros atrativos para os protestos e não há custos individuais ou perigo: a PM é escalada para proteger quem participa; a TV está cobrindo, valorizando, incentivando; e, finalmente, temos as redes sociais e os selfies. É um fenômeno. Colocar nas redes sociais que estou a favor da democracia, sou politizado, tenho interesses em participar da vida pública, vestir as cores do Brasil e demonstrar altruísmo com a sociedade.

 

E, mais, mais importante: postar uma foto na avenida colorida e sentir-me pertencente ao grupo dos dominadores não tem preço.

 

Enquanto debatemos as consequências dos protestos e o que se pode gerar, quem participa e o porquê de participar, ignoramos o fato de que o espetáculo reforça a manipulação conservadora que reproduz o processo de dominação.

 

Se tudo o que foi defendido no domingo fosse levado a sério: por que eu me calo quando um cadeirante é desprezado? Por que eu me calo quando um homem branco de meia idade se senta na cadeira reservada a quem tem necessidades especiais? Por que eu me calo quando uma mulher é assediada na rua? Por que eu me calo quando um negro é abordado pela segurança? E, por que eu me calo quando sou negro, mulher, cadeirante diante do outro passando por essa situação? Quando eu sei exatamente o que é?

 

E, ainda pior, por que, quando não me calo, quem está a minha volta não me apoia?

 

A sociologia ainda está distante da resposta precisa a essas perguntas. Assim como hoje os analistas estão se digladiando para responder por que aqueles que sempre tiveram comida nas panelas saem batendo a panela contra o governo. Os próprios representantes do governo têm suas dúvidas quanto ao real significado de tudo isso.

 

O que o silêncio e o barulho então têm a ver com os protestos e com a dominação?

 

Escolhemos para o que fazer barulho e para o que silenciar. Silenciar para as injustiças cotidianas e assumir a agenda do espetáculo são reveladores enquanto forma de inserção. Não sou tão legal se silencio diante de uma injustiça cotidiana, mas quando não acontece comigo, não é problema meu e me poupa. Nenhuma câmera vai me denunciar e não vou retratar meu próprio imobilismo. Mas, se vou a um protesto contra um governo acusado de corrupto, pago de bacana entre os amigos e de responsável pelo país com um selfie pela democracia.

 

É sintomático que muita gente esteve nas ruas aos domingos, na verdade, apoia pautas que vão estar presentes nas manifestações desta quinta-feira. Porque: mais silenciosa, menos espetacular e sem a necessidades dos selfies dos protestos anteriores, há outra pauta em movimento. Nitidamente com menos poder de mobilização e menos espetaculosa também, é verdade.

 

Nas manifestações marcadas para este dia 20/08, os movimentos sociais, sindicatos e parte das esquerdas também vão às ruas. Para apoiar o governo? Ou para pedir o fim do PSDB? Para tirar selfie com a polícia? Para afirmar um compromisso com o Brasil verde e amarelo? A resposta a todas essas perguntas é não. Vão à rua manifestar-se politicamente e assumir uma posição no debate. Vão se manifestar em favor de reformas populares e contra os ataques aos direitos sociais e trabalhistas. Vão criticar o ajuste fiscal, que o governo aceitou fazer como saída para a crise econômica. Vão se posicionar contra a pauta conservadora assumida pelo Congresso e seu presidente Eduardo Cunha.

 

Esses movimentos estiveram e estão nas ruas desde que ganharam fôlego contra as injustiças que dominam o país. Sabem que é importante se posicionar mesmo com poucas chances de sucesso. E ao contrário da pauta conservadora, essa luta é muito maior que a derrota de uma eleição. Pessoas que vão as ruas nos dias de feira, fazem isso por necessidade, não pela foto.

 

Mas, em tempos de espetáculo, a política é coisa menor e menos importante. Na comparação entre os eventos, estampada na capa dos jornais do dia seguinte, o fiel da balança é a imagem. Apenas a imagem; tanto que algumas pesquisas têm aventado o que todos já sabem: não importa se quem está organizando o protesto é ou não mais corrupto que o próprio protesto contra a corrupção. Mais uma vez o silêncio para a política é a fachada do espetáculo.

 

Enfim, temos motivos e lados para as manifestações. Eles são o fundamento do protesto. Não adianta dizer que vai ao protesto pelos seus motivos. É uma contradição ir a um protesto com uma agenda própria e individual de reivindicações, mas graças às redes sociais esse crime político tem se espalhado.

 

Aparentemente, a moda do selfie permite essa atrocidade: hoje cada um reivindica seu próprio motivo para protestar e pega carona no evento coletivo. Fica como saldo um apanhado de causas sem sentido e paradoxais: os que defendem a democracia e os que defendem a ditadura caminham juntos e sem constrangimento.

 

Tempos loucos? Não, simplesmente tempos de recompor a maioria que se incomoda com as mudanças recentes, mas que não admite seu próprio conservadorismo. Com constituição ou sem constituição é preciso expulsar os comunistas. Por isso, aos domingos protestam os dominadores e suas lacraias, desde que a dominação seja reproduzida a partir da próxima segunda-feira. E se na quinta-feira alguém se atreve a levantar, os abutres da repressão estarão a postos para silenciar. Enfim, com imagens do coletivo, desafie o status quo quem quiser perder.

 

- Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário

 

Crédito da foto: Correio Braziliense

 

20/08/2015

http://brasildebate.com.br/um-selfie-pela-democracia-as-narrativas-dos-protestos-e-seus-impactos/#sthash.hALT8FDe.dpuf

 

https://www.alainet.org/en/node/171866?language=es
Subscribe to America Latina en Movimiento - RSS