Onde está a refinaria de Pernambuco?

22/12/2005
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A Constituição Federal inicia o seu artigo primeiro com “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...”, escrito assim, sem maiores definições do que vem a ser federativo, porque os redatores da Constituição acharam isto bem óbvio. Mas o óbvio, quando aplicado à vida prática, não é assim tão óbvio. A organização federativa do imenso território brasileiro, conseguida sob repressão e vários crimes e assassinatos, é incapaz até hoje de ver federativo os acontecimentos distantes do Sudeste e do Sul do Brasil. A notícia da pedra primeira da refinaria de petróleo de Pernambuco comprova isso. Por todos os motivos, sem nem sequer um menos um, esse é um acontecimento de vulto e importância para qualquer veículo da imprensa, no Brasil ou na América Latina. De um ponto de vista político, esse investimento dos governos Lula e Hugo Chávez inaugura uma cooperação entre governos democratas da América do Sul, que se unem sem consulta a Condoleza Rice. De um ponto de vista econômico, chegam a ser fartos e evidentes as ramificações e frutos de tal refinaria. Investem-se nela dois bilhões e meio de dólares, e não sabemos se os algarismos arábicos serão mais eloqüentes: 2.500.000.000 de dólares. Geram-se 230 mil empregos, o que, por supuesto, leva a cadeias de efeitos econômicos e financeiros que não se podem prever. E mais, um supergasoduto, de, atenção, mais de oito mil quilômetros, e mais ferrovias, que vêm por conseqüência a partir do ato dessa refinaria. Carajo, que más? As evidências não se evidenciam Escrevemos acima que um acontecimento dessa natureza é digno de aparecer com destaque em qualquer veículo da América Latina. Tivemos o cuidado de não escrever “notícia”, porque notícia, pelo visto, não é. A partir do Brasil civilizado, queremos dizer, a partir do Sul e Sudeste da federação. Diz O Globo de 17.12.2005: “PT pode ter outro candidato a presidente, admite Lula”. - Sim, mas... - Calma, sigamos: “Comparando-se a JK e Getúlio, ele diz que imprensa brasileira é igual à da Venezuela”. - Sim, mas, o que tem a ver... - Calma, porque devemos continuar: “Em queda nas pesquisas, o presidente Lula admitiu ontem, pela primeira vez, a possibilidade de o PT ter outro candidato à Presidência”. - Sim, mas por favor paremos de broma: o que isto tem a ver com a refinaria? Com certeza, aqui se faz um programa típico muito usado por entrevistadores: cortar e colar, cortar e colar, montar e montar, até atingir a inverossimilhança. Com absoluta certeza, essa notícia nada tem a ver com a refinaria. Ao que respondemos: quem tiver dúvida, que vá ao endereço http://oglobo.globo.com/jornal/capa/clicavel.asp e veja se somos fiéis e verdadeiros. Abaixo da manchete, dos titulares impressos, há uma foto de Hugo Chávez e Lula, aos cochichos, certamente a conspirar contra a propriedade e inteligência dos leitores do Brasil. E mais, nas páginas a que remete o título da primeira página: “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem que, se decidir ser candidato à reeleição em 2006, será para ganhar. E admitiu pela primeira vez a possibilidade de lançar outro candidato, ‘um companheiro’, à sua sucessão. Durante discurso na inauguração da pedra fundamental da refinaria Abreu e Lima, no porto de Suape, a 45 quilômetros de Recife, o presidente voltou a afirmar que não vai precipitar a decisão de concorrer à reeleição. Ao lado do colega venezuelano Hugo Chávez, ele ainda criticou duramente a oposição e a imprensa”. Vêem? Mirem, nesse primeiro parágrafo, onde pelas normas jornalísticas o mais importante se diz, a refinaria entrou e saiu rápida, e muda, e com passagem meteórica, e tão insignificante e inexpressiva que poderia ser substituída por qualquer bodega ou deserto do país. “Durante discurso na inauguração do Bar da Cabra, a 45 quilômetros de Pirassununga, o presidente voltou a afirmar...”, poderia ter sido escrito, com igual impacto. Talvez até com mais impacto. Vamos para a Folha de São Paulo, o jornalismo de ponta, não perguntem do quê, do Brasil: “Lula diz que oposição vai perder fôlego até a eleição”, anuncia-se nos titulares da primeira página de 17.12. Que se completam: “O presidente Lula afirmou que, após ‘meses na rua gritando’, a oposição irá perder ‘fôlego’ até as eleições de 2006 e disse que, se decidir disputar a reeleição...”. E mais, sem mas, lá nas páginas internas: “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou ontem que, após ‘meses na rua gritando’, a oposição irá perder ‘fôlego’ até as eleições de 2006. Disse ainda que, o dia em que decidir se irá disputar a reeleição ou não, ‘será para ganhar’. As declarações foram feitas em Ipojuca (57 km de Recife-PE), na mesma semana em que o presidente perde, pela primeira vez, a ponta na preferência do eleitorado nas intenções de voto”. Vêem? Permitam-nos a cópia do que observamos antes, à semelhança da imprensa da civilização, que reproduz seus pontos de vista na melhor das vontades e vizinhança: nesse primeiro parágrafo, onde pelas normas jornalísticas o mais importante se diz, a refinaria entrou e saiu rápida, e muda, e com passagem meteórica, e tão insignificante e inexpressiva que poderia ser substituída por qualquer bodega ou deserto do país. “Durante discurso na inauguração do Bar da Cabra, a 45 quilômetros de Pirassununga, o presidente voltou a afirmar...”, poderia ter sido escrito, com igual impacto. Talvez até com mais impacto. Vejamos então o Jornal do Brasil: “Só entro para ganhar”, na primeira página. E lá adiante, “Ao lado do líder venezuelano Hugo Chávez, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que apenas sairá candidato em 2006, se for para ganhar, de fato, as eleições. A declaração foi feita durante o discurso de inauguração do início das obras da refinaria Abreu e Lima, no Porto de Suape, em Pernambuco. A construção custará milhões de dólares às estatais de petróleo dos dois países. Este é um exemplo concreto da já declarada aliança estratégica entre Brasil e Venezuela”. Pouparemos a paciência do leitor. O investimento mais importante da história de Pernambuco, a refinaria que foi objeto de encarniçada disputa por nove estados, é absolutamente invisível na imprensa do Sudeste e do Sul. Antes fosse um Bar do Cabrito. Ou, melhor, um pub em Londres. A refinaria de Pernambuco em Pernambuco Comecemos pelo Jornal do Commercio. Na primeira página: “Só serei candidato se for para ganhar”. Abrimos então bem os olhos. Deve estar uma grande trave em cima da nossa visão. Mas ali está a bandeira da revolta nativista de 1817, da rebelião separatista da federação, se não nos enganamos. Sim, a bandeira do movimento pelo qual morreu fuzilado o Padre Roma, pai de Abreu e Lima. Arco-íris, um sol, uma estrela e uma cruz. E mais, se não caímos em delírio: “Recife, 17 de Dezembro de 2005 – Sábado”. Sim, não é Recife, capital São Paulo, ou mesmo Recife, capital Rio de Janeiro, mas Recife, capital de Pernambuco, até onde nos lembramos. Então vamos às páginas internas, porque só nas aparências não acreditamos. E lemos, na falta de melhor verbo: “Num discurso de improviso de 40 minutos, presidente diz que se tentar a reeleição será ‘para vencer’ e mandou recados aos adversários. Lula também fez críticas à imprensa, que ‘publica primeiro e depois investiga’”. E mais, para melhor esclarecimento de qualquer dúvida: “Dois dias depois da divulgação da primeira pesquisa eleitoral em que aparece em desvantagem em relação ao prefeito de São Paulo, o tucano José Serra, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), afirmou, ontem, que ‘se decidir pela reeleição, será para vencer as eleições’. Ao lado do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e o governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos (PMDB) – durante a solenidade de lançamento da pedra fundamental da Refinaria Abreu e Lima, no município de Ipojuca –, o petista entusiasmou-se e mandou vários recados aos adversários políticos”. Para não dizer miopia, nem dizer que aqui existe um deslocamento de retina, do jornal, deveríamos dizer que nessa edição de 17.12 o Jornal do Commercio é um jornal de outro estado da federação, do Sudeste para o Sul. Talvez, quem sabe, nessa edição, o jornal pretendeu se inscrever entre os grandes jornais do Brasil, e por isso macaqueou-lhes a sintaxe e o ponto de vista. E nisto seria o mais pernambucano dos jornais: a eterna mania de grandeza dos conterrâneos, “o melhor carnaval do mundo... o maior bloco de carnaval do planeta.... o sol mais brilhante do hemisfério sul”, e por isso o Jornal do Commercio desejou ser o mais sulista jornal do país. Enfim, um pernambucano de original maneira. “Sou um megalomaníaco sui generis. Ninguém aqui é mais antipernambucano do que eu”. Talvez. Então vamos para outro gigante, para o mais antigo jornal em circulação da América Latina. Miremos o Diário de Pernambuco. Primeira página: “Agora é a vez do Nordeste”. Aqui, mais uma vez, somos acometidos de sério descaminho de visão. E por isso mais uma vez miramos. “Agora é a vez do Nordeste”. Sem dúvida, isto não é um hino de alvíssaras, isto não é um frevo, um arrebentar da massa escura e parda, um estouro brabo de boiada ao som de Vassourinhas. Isto não é o povo rebelado, os guarda-sóis para os céus, o grito preso solto e desembestado, um pico e seu feminino de redenção. Carajo, muito infelizmente não. É mesmo a primeira página do Diário de Pernambuco de 17 de dezembro de 2005. A que se acrescentam 4 páginas do caderno de Política e 7 do caderno de Economia. Esse tom apoteótico, quase diríamos, não fosse a rima, patriótico, vem com uma verdade editorial que nos deixa quase desmemoriado de antigas edições do Diário. Numa atitude enfim de corno apaixonado. E vejam por quê. Meia página do Diário foi reservada para tópicos do discurso de Lula na inauguração da refinaria, tópicos que não destacam apenas as palavras referentes à luta de classes de hoje no Brasil, que a imprensa em geral, equivocadamente, interpreta como puramente eleitorais. Por exemplo, e vale a transcrição: “Vamos escolher três ou quatro projetos de integração e vamos gastar, seja U$ 10, 15, 20 bilhões, mas vamos integrar a América do Sul de verdade, com gás, petróleo, energia elétrica, estrada, ponte, senão nós estaremos subordinados a ficar de costas para a América do Sul, olhando para o mundo desenvolvido que agora, na Organização Mundial do Comércio, não está muito preocupado conosco.... No começo de janeiro voltarei ao Nordeste, a Pernambuco e ao Ceará, para dar início à construção de uma ferrovia de 1.800 quilômetros de extensão. Logo, logo eu vou dar o primeiro ponto de solda no gasoduto que vai ligar o Sudeste ao Nordeste, fazendo com que a malha seja totalmente ligada. É a refinaria Abreu e Lima, é uma BR ligando o Nordeste brasileiro pelo litoral, é uma ferrovia, a transnordestina, é um pólo siderúrgico. ... Quero ver estampado, na cara das mulheres, dos homens do Nordeste, o sorriso da alegria, de satisfação, e dizerem em alto e bom som: finalmente, o Nordeste deixou de ser tratado como reprodutor de cidadãos de segunda categoria”. É a política, estúpido As razões editoriais que levam um jornal a seguir uma orientação se manifestam por seus textos e fotos publicados. Ou até mesmo pelo que o periódico omite, olvida, deixa de publicar como irrelevante ou inconveniente. As razões secretas, que jamais se publicam, mas que se movem e agem sobre o espaço público, no geral são financeiras e econômicas. Como bem esclareceu um Mesquita de O Estado de São Paulo, um jornal vai muito bem quando não faltam anunciantes. Quanto melhor for pago um jornal, tanto melhor e saudável ele será, para o dono. O distinto público que se dane. Os jornais só se fazem para o cidadão na vida e na luta desses doidos impenitentes, como são qualificados os mais dignos jornalistas. A situação nova que vem a propósito dessa refinaria é que a política cria uma transformação econômica. E portanto uma transformação editorial. Que os maiores jornais do Sul e do Sudeste ignorem a importância de um empreendimento desse tamanho é compreensível pelo momento político de hoje no Brasil. Sim, claro, a isto se acrescenta, como um multiplicador de patologia, o investimento se fazer em lugar periférico, longe da civilização, das metrópoles. Desde que o mundo é mundo o mundo é o Sul, o Nordeste é a região. Esperemos os próximos capítulos das razões secretas, que ainda não se dizem em público. Até lá, somente podemos desconfiar. No lugar da terra de luz a pino, onde mais cai a luz, segundo Pinzón, citado por João Cabral, se fez claro que uma transformação política também gera uma transformação econômica. Por isto, somente podemos concluir diante do paradoxo dessa refinaria invisível: é a política, estúpido.
https://www.alainet.org/en/node/113940
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