Crise da Esquerda
Uma nova força social está por vir
25/07/2005
- Opinión
A crise que assola o governo Luiz Inácio Lula da Silva é a mais séria da esquerda brasileira. Corrupção, arrogância, frouxidão nos princípios. Diante disso, o ciclo do Partido dos Trabalhadores (PT) se encerra. A avaliação é de César Benjamin, da coordenação nacional do Movimento Consulta Popular, para quem os líderes petistas se tornaram algozes de sua base social, os pobres.
Em curto prazo, afirma Benjamin, a direita, representada por PSDB e PFL, se fortalece. Mas, acrescenta, o povo brasileiro vai exigir a formação de uma nova força social, antineoliberal, porque a crise é mais profunda do que a da esquerda. Para ele, o país está doente. E o remédio é um processo de criação: "O fim do ciclo PT nos coloca o desafio de construir uma nova interpretação, uma nova organização política e uma nova visão estratégica".
Brasil de Fato - Todos os dias aparecem elementos da crise política, como novos esquemas de corrupção, personagens de quem nunca se havia falado antes. Os fatos tomaram uma velocidade inimaginável. O que realmente está acontecendo?
César Benjamin - O momento é muito confuso. Um sintoma disso é a proliferação de análises de conjuntura, ou supostas análises. Isso tem um lado positivo, pois mostra inquietação e vontade de compreender as coisas, mas gera uma cacofonia enorme. Precisamos procurar o que é essencial, sem nos perder em tergiversações ou em aspectos secundários.
BF - E o que é essencial?
Benjamin - Por exemplo, é necessário reconhecer claramente que a esquerda brasileira adotou nos últimos 15 anos uma prática nova. Refiro-me à introdução, em larga escala, do que podemos chamar de "o poder dissolvente do dinheiro". A expressão é de Karl Marx, em outro contexto. A partir de certo momento, que talvez possa ser fixado no início da década de 1990, o grupo que obteve o controle do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) baseou sua ação política em fontes de financiamento nebulosas, que se multiplicaram, e em uma expansão inédita de relações mercantis dentro da esquerda. Usou o poder do dinheiro em larguíssima escala e obteve grande êxito. Isso exige uma reflexão séria, que a esquerda não parece disposta a fazer.
BF - Como era a esquerda antes do domínio do dinheiro?
Benjamin - A esquerda cometeu muitos erros ao longo de sua história, mas sempre foi uma força de contestação, liderada por grupos e pessoas que tinham compromissos de longo prazo com a transformação da sociedade. Podemos fazer muitas críticas às gerações que nos antecederam, mas nenhuma as atinge do ponto de vista moral. A crise atual é a mais grave da nossa história. Muito mais grave do que aquela que aconteceu após o golpe militar de 1964. Pois as crises anteriores eram resultado de enfrentamentos com um adversário, enquanto a atual é interna.
BF - Mas, afinal, que esquerda é essa?
Benjamin - Os fundamentos da esquerda foram corroídos por dentro. Não podemos tergiversar sobre isso. Os esquemas de corrupção que estão vindo à luz não são fatos isolados nem começaram recentemente. São apenas a expansão, para a esfera do governo federal, de um tipo de prática introduzida na esquerda brasileira há cerca de 15 anos. O grupo que fez isso construiu uma vastíssima rede de cumplicidade, com níveis diferentes de envolvimento, ativo ou passivo. É uma rede tão grande que o limite dessa prática não foi dado, lamentavelmente, pela própria esquerda. Foi preciso uma desavença com um deputado federal fisiológico para que o problema viesse a público. O período de liderança de Lula resultará numa dissolução interna da esquerda.
BF - É uma visão muito negativa da história recente da esquerda...
Benjamin - Temos que buscar uma combinação de firmeza e humildade. Firmeza para reencontrar princípios que a esquerda perdeu. Humildade para reconhecer que essa esquerda não se capacitou para ser a depositária da solução da crise brasileira. Temos de nos abrir para tentar identificar, no conjunto da sociedade, forças maiores do que a própria esquerda, que podem ter uma atuação positiva. A crise brasileira é tão grave que é necessário surgir uma alternativa.
BF - Você não vê nada positivo?
Benjamin - A crise tem dois aspectos positivos. Primeiro, ela coloca um limite no fisiologismo e na corrupção dentro da esquerda, que será forçada a refl etir sobre isso. Segundo, ela pode vir a abortar a principal operação política que estava em curso, que era produzir uma falsa polarização eleitoral entre o PT e o PSDB. Se essa operação desse certo - ou se ela vier a dar certo - a hegemonia burguesa estaria bastante consolidada. Quem controla só a situação está sob permanente risco. Hegemonia pede controle da situação e da oposição. Estávamos marchando para o paradigma dos Estados Unidos: o Partido Republicano e o Partido Democrata se alternam no poder, sem colocar em risco a hegemonia da grande burguesia. A meu ver, Lula não tem como ser candidato nas eleições de 2006. Se for, terá de ser combatido duramente.
BF - Mas é a direita que se fortalece...
Benjamin - É claro que o PSDB e o PFL se fortalecem no curto prazo. Mas não acredito que a sociedade aceite uma hegemonia unipolar da direita. A sociedade vai pedir a formação de um campo não neoliberal. Nosso maior problema político, nessa conjuntura, é identificar o contorno desse novo campo, suas forças sociais, seu programa mínimo, para sairmos de uma posição passiva e reativa e adotarmos uma posição propositiva. Precisamos pensar nossa ação em um contexto de alternativa ao neoliberalismo, se possível, já em 2006. Não sei se estaremos à altura desse desafio. Se ficarmos presos ao universo do governo e à luta interna do PT não conseguiremos enfrentá-lo. A crise do governo Lula, paradoxalmente, pode ser a crise do modelo neoliberal.
BF - Você defende um afastamento em relação ao PT. O partido, entretanto, não é só corrupção. Tem experiências organizativas e políticas fundamentais, que mudaram o cenário político brasileiro. Por exemplo, o orçamento participativo e as relações com movimentos sociais...
Benjamin - Um ciclo da esquerda brasileira se encerra. O que não quer dizer que tudo que tenha sido feito nesse ciclo tenha sido negativo. Não se pode imaginar que vamos criar um novo absoluto. Esse, aliás, foi um problema presente na criação do PT, pois ele não reivindicou herança alguma. Jogou tudo o que havia existido antes na vala comum do erro. O fim de um ciclo não quer dizer que o conjunto de experiências tenha sido negativo ou que não haja herança a ser recuperada. O que caracteriza um ciclo é uma dada interpretação sobre a sociedade, uma forma de luta estratégica e uma organização política consolidada, que seja portadora daquela interpretação e condutora da luta estratégica.
BF - E o que teremos pela frente findo o ciclo PT?
Benjamin - Tivemos um ciclo longo do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que entrou em crise após 1964. A partir daí, até mesmo por causa da repressão, houve um período de diáspora. Nenhum centro hegemônico se consolidou até o surgimento do PT, no início dos anos 80. Houve 15 anos de intervalo. O fim do ciclo PT nos coloca o desafio de construir uma nova interpretação, uma nova organização política e uma nova visão estratégica. Não é tarefa simples, que uma pessoa ou um grupo possam fazer. Depende de um processo, que envolve a dinâmica da esquerda e da sociedade. O PT, por exemplo, não surgiu de um ato de vontade. Foi fruto de um momento histórico preciso.
BF - Enquanto isso, temos que esperar sentados?
Benjamin - Não controlamos o surgimento de um novo ciclo. O que podemos fazer hoje é mudar nossa postura, pois a esquerda tem sido frouxa nos princípios e arrogante em sua auto-avaliação. Precisamos ser o contrário disso: firmes e humildes. Assumir claramente que temos de reaprender. Temos que lutar muito para conquistar a confiança do povo brasileiro. É um processo dolorido, que envolve prática, cultura política, valores.
BF - Que condições temos de fazer isso?
Benjamin - Toda a minha militância, desde que saí do PT em 1995, foi para tentar advertir que a trajetória do partido conduziria a esquerda brasileira à maior crise de sua história. Disse isso várias vezes - a primeira delas no próprio encontro nacional do PT no Espírito Santo, diante de 800 delegados - e paguei muito caro: calúnia, censura, isolamento. Nesse encontro, usei a expressão "ovo da serpente" para me referir ao "caixa dois" feito na campanha de 1994, à revelia da direção. Uma direção partidária que aceita passivamente que uma parte sua monte mecanismos paralelos de financiamento, aliando- se a bancos e empreiteiras, não pode ser chamada direção. É uma farsa.
BF - Dissolução e corrupção como em qualquer partido de direita?
Benjamin - Saí do PT quando percebi que não havia mais espaço para a batalha de idéias. A atividade partidária se transformara em mera composição de interesses, que passava pelo controle dos inúmeros "caixas dois" que se multiplicavam. Nesses anos todos, vi a rede de cumplicidades. A esquerda não reagiu. Parte dela foi comprada e aderiu a essa prática. Gostou de fazer campanhas eleitorais milionárias. Enriqueceu. Os companheiros que não se corromperam, que felizmente são muitos, fizeram uma crítica leve, pois havia carreiras em jogo, expectativas de poder, compromissos. O descalabro é enorme. Todos os dias aparecem 200 mil dólares para lá, 500 mil para cá, 5 milhões para lá. É uma quantidade de dinheiro extraordinária, levantada por uma máquina sistêmica, planejada, coletivamente organizada. Tenho a impressão de que o governo Lula estava montando um esquema de corrupção poucas vezes igualado na história brasileira.
BF - O Lula não pode reanimar essa esquerda em diáspora?
Benjamin - O PT aderiu à ordem da pior forma possível, diferente da socialdemocracia européia, que aderiu com uma doutrina e com ganhos para sua base social. O PT se associou à ordem capitalista brasileira, nos anos 90, em um período em que não houve ganhos para a base social que o partido deveria representar. Aderiu sem doutrina e, uma vez no poder, tornou-se algoz de sua base social. Os líderes do PT, individualmente, mudaram de classe social. O dinheiro comandou o processo. Isso é muito grave.
BF - No momento atual, o que é uma frente antineoliberal? Para que serve?
Benjamin - Com o governo Lula, a crise brasileira chegou a um patamar novo. Não dá mais. Pegue o atual Orçamento da União. Em dez dias, o Brasil gasta em juros tudo o que investe em educação no ano. Em um dia de pagamento de juros, o Brasil gasta mais do que em habitação popular no ano. Em um minuto de pagamento de juros, gasta mais do que em política de direitos humanos no ano. Quando o país chega nesse ponto, não tem mais discussão técnica. Qualquer discurso que justifique isso é criminoso. O país está doente. O agravamento da crise brasileira é muito rápido. Isso pode facilitar uma política firme, ao mesmo tempo radical e generosa. Muitos setores honestos da sociedade estão percebendo isso. Acho que deveríamos elaborar um programa mínimo, antineoliberal, e definir claramente uma ruptura com o sistema que mantém o Brasil em estado de doença crônica.
Quem é
Pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), César Benjamin integra a coordenação nacional do Movimento. Consulta Popular - organização política que reúne militantes de diversos movimentos sociais do país, que busca se constituir como pólo de reflexão e prática, na busca de alternativa para o Brasil, por meio da formação e articulação da militância e de apoio aos movimentos sociais. A Consulta Popular busca construir uma organização política que, sempre atuando junto do povo, possa disseminar amplamente uma nova interpretação do Brasil e propor ao país um programa de transformações estruturais. Assume como seu objeto de reflexão e de prática, de forma ainda mais plena, o Projeto Popular para o Brasil. Benjamin é autor de A Opção Brasileira (Contraponto Editora, 1998). Ele integra o Conselho Político do Brasil de Fato.
- João Alexandre Peschanski. Jornal Brasil de Fato, Edição Nº 125, São Paulo, de 21 a 27 de julho de 2005.
https://www.alainet.org/en/node/112527
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