“Livre comércio” e desenvolvimento
04/05/2005
- Opinión
Acaba de ser lançado o novo livro de Kjeld Jakobsen, “Comércio Internacional e desenvolvimento” [1]. Ex-secretário de relações internacionais da CUT e da prefeitura de São Paulo na gestão Marta Suplicy, o autor tem vasta experiência nesse campo e é um estudioso apaixonado pelo tema. Entre outros méritos, a obra é bastante didática. Apresenta um histórico sobre a origem do conceito de “livre comércio”, aborda as tensas negociações da fase recente, do Acordo Geral de Comércio e Tarifas (Gatt) até as rodadas da OMC, destaca o papel do movimento social nesse embate estratégico e formula alternativas para o futuro.
Kjeld não vacila em desmistificar o discurso hipócrita das potências capitalistas, adeptas do faça o que eu mando, não faça o que eu faço. Conforme demonstra, antes de imporem a liberalização comercial, elas adotaram várias medidas para proteger as suas economias e garantir condições de competitividade. Para conquistar a hegemonia mundial, “valia de tudo: medidas protecionistas, ações bélicas, disputar colônias, ignorar patentes, entre outras ações, até que a própria disputa provocou a I Guerra Mundial”. Preocupadas com as crises econômicas periódicas, as guerras e a ascensão do socialismo, só no segundo pós-guerra é que elas adotaram algumas medidas para regulamentar a economia, baseadas nas idéias de Lorde Keynes.
Após o rico relato histórico, o autor mostra que o comércio mundial passou a viver uma nova e regressiva etapa a partir dos anos 70. Já sob o império dos dogmas neoliberais, as potências capitalistas reforçaram seus entraves protecionistas, dificultando o acesso das nações periféricas ao mercado mundial, ao mesmo tempo em que impuseram a esses países velhas teses da libertinagem comercial. Essa prática desfigurou ainda mais o comércio na década passada. “Os grandes perdedores foram a África e a América Latina. As exportações latino-americanas reduziram-se em 18% e suas importações cresceram quase 17%”.
O exemplo mais perverso dessa prática é dado pelos EUA, que possuem várias barreiras não-tarifárias que entravam as exportações dos países em desenvolvimento. Ele cita as seções 203 e 301 de sua legislação. A primeira protege setores produtivos para garantir a recuperação de sua competitividade. Hoje é usada por George Bush para impedir a importação do aço brasileiro e reerguer o seu obsoleto parque siderúrgico. Já “a seção 301 é ainda mais draconiana”, permitindo que a USTR (United States Trade Representative) – organismo de assessoria da presidência – baixe duras sanções. “Na prática, tem servido de poderosíssimo instrumento político para os EUA provocarem mudanças na política comercial de outros países”.
Conforme o livro revela, hoje a prioridade das nações imperialistas nem está mais centrada no comércio. As corporações empresariais, principalmente dos EUA, pressionam a OMC para impor os “novos temas comerciáveis”, como a liberação de serviços, de compras governamentais e de investimentos (TRIMS) e a proteção da propriedade intelectual (TRIPS). “Empresas transnacionais do setor farmacêutico, como a Merck e a Pfizer, e do setor de serviços financeiros, como American Express e Citycorp, foram tão ativas no lobby pró-nova rodada que chegaram a ser consideradas as principais responsáveis por sua realização”.
Nos anos 90, essa relação assimétrica de igualdade entre desiguais devastou a América Latina. Governos servis, que mantiveram “relações carnais” com os EUA, desestatizaram, desnacionalizaram e destruíram as economias locais. FHC, por exemplo, “alterou todo capítulo da Constituição para facilitar e proteger investidores estrangeiros; alterou a legislação sobre propriedade intelectual (Lei de Propriedade Industrial de 1996) quase totalmente de acordo com as reivindicações do governo norte-americano... Grande parte do desemprego estrutural e do crescimento do trabalho informal na América Latina na década de 90 deve-se ao resultado das negociações da Rodada do Uruguai e ao Consenso de Washington”, garante Kjeld.
Para impor essa orientação neocolonialista, as potências usam os organismos internacionais, como o FMI e a OMC. Esta última, instituída em 1995, é impermeável aos interesses dos países em desenvolvimento. As negociações não possuem transparência. Nas negociações fechadas do green room (sala verde) tem acesso privilegiado o Quadrilátero – EUA, União Européia, Japão e Canadá. O funcionamento do sistema de solução de controvérsias é excludente. “Para acompanhar o dia-a-dia da OMC, tornou-se necessário ter missões diplomáticas permanentes em Genebra, com técnicos capacitados e em número suficiente para cobrir toda a agenda de reuniões dos oitos grupos negociadores, 18 comitês e oito grupos de trabalho”.
Todo esse aparato imperialista, porém, tem gerado crescentes conflitos. Ele não anula as disputas entre as próprias potências capitalistas por novos mercados e, atualmente, encontra maiores resistências dos países da periferia do sistema. Nesse ponto, o autor relata as contradições em curso e destaca o papel das nações em desenvolvimento, em especial do Brasil, ao se contrapor às relações desiguais no comercio mundial. Também enfatiza a importância da participação dos diversos setores organizados da sociedade, realçando o significado histórico da Batalha de Seattle, em novembro de 1999, quando milhares de manifestantes inviabilizaram a Conferência Ministerial da OMC sob o slogan de que “nosso mundo não está à venda”.
“Essas iniciativas produziram a base mínima para unificar o movimento social e uma parte dos sindicatos, considerando-se que a CIOSL e suas filiadas mais conservadoras se apegaram quase que exclusivamente à aprovação do grupo de trabalho da OMC sobre o vínculo entre direitos trabalhistas e comércio”, relata, criticamente, o ex-dirigente da CUT. Para ele, o movimento social precisa intensificar a sua participação nesse tema estratégico e ampliar sua pauta de reivindicações. Mais do que isso, ele não pode se iludir com o falso discurso dos neoliberais que relacionam “livre comércio” ao desenvolvimento econômico e social das nações periféricas. “Os números e os fatos falam por si mesmos e apontam claramente quem ganhou e quem perdeu no comércio mundial ao longo do tempo, bem como quanto há de verdade e de falsidade nos discursos e quanto o discurso se distancia da prática”, conclui o esclarecedor livro de Kjeld Jakobsen.
- Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro “A reforma sindical e trabalhista no governo Lula” (Editora Anita Garibaldi).
NOTA
1- Kjeld Jakobsen. “Comércio internacional e desenvolvimento - Do Gatt à OMC: discurso e prática”. Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
https://www.alainet.org/en/node/111902
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