Ler um vídeo (Segunda Parte): duas falhas

28/08/2004
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Bom, é verdade, estou sendo generoso demais com o espelho. Mas não me refiro só ao fato de que só tenhamos tido duas falhas, erros ou faltas ("falhos" dizem por estas bandas) no primeiro ano de atividade dos caracóis e das Juntas de Bom Governo, mas sim que se trata de duas faltas que já parecem ser crônicas na nossa ação política (e que contradizem flagrantemente nossos princípios): a posição das mulheres, de um lado, e, do outro, a relação da estrutura político-militar com os governos autônomos. Quem esteve em contato com os caracóis ou com as Juntas de Bom Governo deve ter muitas mais, mas uma parte delas se deve à dinâmica da resistência, outra é de erros que, pelo menos como tendência, já estão em processo de solução, e outra parte ainda é de erros que não o são (ou seja, são ações propositais). Há outros erros que não tenho certeza se devam a algo que tenha a ver com a guerra, a resistência, a clandestinidade. Entre eles, há, por exemplo, nossa tradicional falta de cortesia. É comum que quem chegue aos caracóis e tente falar com a Junta de Bom Governo, passe um bom tempo esperando para ver se será recebido ou não. Também é freqüente que se mandem perguntas e as respostas não cheguem ("deveriam ao menos se dar ao trabalho de responder que não vão responder", suplicava-resmungava uma sociedade civil). Pode parecer engraçado, mas para alguém que às vezes cruzou um oceano (e não metaforicamente) para chegar em nossos solos, não tem graça nenhuma não ser recebido. Eu acredito que é o "jeito" daqui, mas já está sendo resolvido; agora há uma comissão que, enquanto a Junta de Bom Governo se prepara, atende quem chegar (sempre e quando não se trate do governo federal). Contudo, o funcionamento da chamada "comissão de recepção" (formada quase sempre por membros do CCRI) não tem sido igual em todos os caracóis e mais de um ou uma "sociedade civil" tem ficado esperando. Mas, acreditem, estamos atentos a que isso não volte a acontecer...pelo menos não com tanta freqüência. Por outro lado, se deve entender que estamos num movimento, em rebeldia e resistência. Se a isso acrescentamos várias gerações vítimas de enganos e traições, é possível compreender a desconfiança natural diante dos novos visitantes e que se peçam dados e referências que ajudem a esclarecer se o recém-chegado está com boas ou más intenções. O que alguns vêem como tendências à burocratização nas JBG e nos conselhos autônomos são, na realidade, produtos da dinâmica do acossado e perseguido. Outro erro detectado pelas "sociedades civis" e, sobretudo, pelas organizações não-governamentais que trabalham nas comunidades, não o é. Refiro-me ao fato de que os membros das Juntas de Bom Governo mudam continuamente. Depois de "plantões" que vão de 8 a 15 dias (a depender da região) a Junta é relevada; os que estavam voltam a seus trabalhos de conselho autônomo e outras autoridades entram para dirigir a JBG. "Quando já estamos nos entendendo com uma equipe", dizem as "sociedades civis", "a trocam por outra e devemos começar de novo; não há continuidade porque se fazem acordos com uma Junta numa semana e na seguinte já tem outra Junta diferente". Há quem não entra em detalhes e receita: "as Juntas de Bom Governo são um sem mãe". Uma "comissão de vigilância" (equipe do CCRI encarregada de apoiar a JBG em cada região) me falava: "Estamos trabalhando muito, porque quando uma equipe começa a pegar o jeito dos trabalhos da Junta, troca-se por outra equipe e temos que começar novamente a explicar as coisas aos novos. Não só, quando já passaram todas as autoridades autônomas, zas!, troca-se o conselho e dá-lhe outra vez". Vocês vão dizer que sou malandro, mas a verdade é que é planejado para ser assim. Claro que o plano não é para que as Juntas sejam, para usar o termo das "sociedades civis", um sem mãe. O plano é que o trabalho da JBG aconteça em rodízio com os membros de todos os conselhos autônomos de cada região. Trata-se de fazer com que a tarefa de governar não seja exclusiva de um grupo, que não haja governantes "profissionais", que a aprendizagem seja para o maior número possível, e que se rejeite a idéia de que o governo só pode ser desempenhado por "pessoas especiais". Assim, quase sempre acontece que quando todos os membros de um conselho autônomo já aprenderam qual é o sentido do bom governo, há novas eleições nas comunidades e mudam todas as autoridades. Aqueles que haviam aprendido voltam ao milharal e entram os novos...e se recomeça. Analisando detidamente, se verá que se trata de todo um processo no qual povos inteiros estão aprendendo a governar. Vantagens? Bom, uma delas é que é mais difícil que alguma autoridade use de malandragem e, argumentando o quanto é "complicada" a tarefa de governar, não informe as comunidades sobre o uso de recursos ou a tomada de decisões. Quanto mais conhecem o todo, mais difíceis serão o engano e a mentira. E maior será a vigilância que os governados exercem sobre o governante. Também se dificulta a corrupção. Se você consegue corromper um membro da JBG, terá que corromper todas as autoridades autônomas, ou seja, todos os turnos, porque fazer um "trato" só com uma não garante nada (a corrupção também precisa de "continuidade"). Quando você acaba de corromper todos os conselhos, terá que começar de novo, porque até lá já terá ocorrido outra troca de autoridades e o que "acertou" com um não funciona mais. Assim que, praticamente, terá que corromper todos os moradores adultos das comunidades zapatistas. Ainda que, claro, é provável que quando conseguir, as crianças já terão crescido e então de novo... Sabemos que este método dificulta a realização de alguns projetos, mas, em troca, temos uma escola de governo que, em longo prazo, dará frutos numa nova forma de fazer política. Além disso, este "erro" tem nos permitido combater a corrupção que poderia aparecer entre as autoridades. Sei que levará tempo. Mas para aqueles que, como nós zapatistas, fazem planos para décadas, alguns anos não é muito tempo. Outro "erro", que não o é, diz respeito ao fato de que, às vezes, procura-se a Junta de Bom Governo para pedir uma declaração de apoio a um movimento ou a uma organização e o pedido não é atendido. Ou se convida uma JBG a atos políticos e o convite é recusado. Isso não porque à Junta não interesse apoiar ou participar. Deve-se, pura e simplesmente, ao fato de que estas ações não competem à Junta de Bom Governo porque envolvem todos os povos zapatistas, não só os que estão na jurisdição de uma Junta, e as JBG não se podem arrogar representações que não lhes competem. Além disso, na maior parte das vezes, a solicitação e o convite é feito ao EZLN, mas o EZLN é uma coisa e as Juntas são outra coisa. De tal forma que não se aflijam, estamos todos aprendendo. Contrariando o que se poderia pensar, os erros que são de nossa exclusiva responsabilidade são os mais difíceis de resolver. No início da segunda parte do vídeo, dizia que um erro que arrastamos há muito tempo diz respeito ao lugar das mulheres. A participação das mulheres nos trabalhos de direção organizativa continua sendo pequena, e nos conselhos autônomos e nas JBG é praticamente inexistente. Mesmo não sendo uma contribuição do EZLN às comunidades, é também nossa responsabilidade. Se nos Comitês Clandestinos Revolucionários Indígenas de região a porcentagem da participação feminina está entre 33 e 40%, nos conselhos autônomos e nas Juntas de Bom Governo anda, em média, em menos de 1%. As mulheres continuam não sendo levadas em consideração na hora de nomear comissários ejidais e agentes municipais. O trabalho de governo é ainda prerrogativa dos homens. E não é que estejamos a favor do "apoderar-se" das mulheres, tão na moda lá em cima, mas sim que na base social zapatista ainda não há espaços para que a participação feminina se veja refletida nos cargos de governo. E não só. Apesar das mulheres zapatistas terem tido e ter um papel fundamental na resistência, em alguns casos, o respeito dos seus direitos continua sendo uma mera declaração que não sai do papel. É verdade que a violência no interior da família tem diminuído, mas é mais pelas limitações ao consumo de álcool do que por uma nova cultura familiar e de gênero. Também se continua limitando a participação das mulheres nas atividades que implicam sair do povoado. Não se trata de algo escrito ou explícito, mas a mulher que sai sem o seu marido ou sem seus filhos é mal vista e se pensa mal dela. E não me refiro a atividades "extrazapatistas", de cuja participação há restrições severas que incluem também os homens. Falo de cursos e encontros organizados pelo EZLN, pelas JBG, pelos municípios autônomos, pelas cooperativas de mulheres e pelos próprios povos. É uma vergonha, mas devemos ser sinceros: ainda não podemos apresentar bons resultados a respeito da questão da mulher, da criação de condições para seu desenvolvimento de gênero, de uma nova cultura que reconheça a elas capacidades e aptidões supostamente exclusivas dos homens. Mesmo que dê pra ver que isso vai longe, esperamos algum dia poder dizer, com satisfação, que conseguimos resolver pelo menos este aspecto do mundo. Só por isso já valeria a pena. O que é sim uma "contribuição" (má, com certeza) do EZLN às comunidades e ao seu processo de autonomia, é a relação da estrutura político-militar com os governos civis autônomos. De início, a idéia que tínhamos era que o EZLN devia acompanhar e apoiar os povos na construção de sua autonomia. Contudo, o acompanhamento se transforma, às vezes, em direção, o conselho em ordem...e o apoio em estorvo. Já havia dito antes que a estrutura hierárquica piramidal não é própria das comunidades indígenas. O fato do EZLN ser uma organização político-militar e clandestina ainda contamina processos que devem e têm que ser democráticos. Em algumas Juntas e caracóis apareceu o fenômeno de que comandantes do CCRI tomam decisões que não competem a eles e colocam a Junta em maus lençóis. O "mandar obedecendo" é uma tendência que continua topando com as paredes que nós mesmos levantamos. Estas duas falhas requerem nossa atenção especial e, obviamente, medidas que as bloqueiem. Não podem ser atribuídas ao cerco militar, à resistência, ao inimigo, ao neoliberalismo, aos partidos políticos, aos meios de comunicação ou ao mau humor de quando levantamos com o pé esquerdo... É tudo. Fui o mais breve possível porque, na aceitação dos próprios erros, temos que ser tão parcos como extensos nas soluções. Valeu. Saúde e entendo que ainda não entendam. Por isso havia iniciado com "paciência, virtude guerreira". Das montanhas do Sudeste Mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, agosto de 2004, 20 e 10. P.S. Quer dizer que era melhor quando estávamos caladinhos? Seja como for, dizemos o que pensamos e sentimos. De quantas pessoas e organizações podem dizer o mesmo?
https://www.alainet.org/en/node/110502
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