O mundo: sete pensamentos em maio de 2003

30/05/2003
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Introdução. Na medida em que os calendários do Poder vão se deteriorando e as grandes corporações dos meios de comunicação titubeiam entre o ridículo e as tragédias protagonizadas e promovidas pela classe política mundial, lá em baixo, no grande e extenso alicerce da cambaleante Torre de Babel moderna, os movimentos não param e, mesmo que ainda balbuciem, começam a recuperar a palavra e sua capacidade de ser espelho e cristal. Enquanto lá em cima se decreta a política do desencontro, no porão do mundo os outros encontram a si mesmos e ao outro que, sendo diferente, é outro de baixo. Como parte desta construção da palavra espelho e cristal, o Exército Zapatista de Libertação Nacional retomou os diálogos com movimentos e organizações sociais e políticas no mundo inteiro. Inicialmente, trata-se de ir construindo uma agenda comum de discussão com irmãos e irmãs do México, Itália, França, Alemanha, Suíça, Estado Espanhol, Argentina e União Americana. Não se pretende estabelecer acordos políticos e programáticos, nem tentar uma nova versão da Internacional. Tampouco se trata de unificar conceitos teóricos ou uniformizar concepções, mas sim de encontrar e/ou construir pontos comuns de discussão. Algo assim como construir imagens teóricas e práticas vistas e vividas a partir de diferentes lugares. Como parte deste esforço de encontro, o EZLN apresenta agora estes 7 pensamentos. O fato de "localizá-los" num horizonte de espaço e tempo significa, de nossa parte, um reconhecimento de nossas limitações teóricas, práticas e, sobretudo, de visão universal. Esta é a nossa primeira contribuição à construção de uma Agenda mundial de discussão. Agradecemos a revista mexicana Rebeldia que tem aberto suas páginas a estes pensamentos. Do mesmo modo, agradecemos as publicações que na Itália, França, Estado Espanhol, União Americana e América Latina fizerem o mesmo. 1. Teoria. O lugar da teoria (e da análise teórica) nos movimentos políticos e sociais costuma ser considerado óbvio. Contudo, o que é evidente costuma esconder um problema, neste caso: o dos efeitos de uma teoria numa prática e o "rebote" teórico desta última. E não só isso, o problema da teoria é também o problema de quem produz esta teoria. Não igualo a noção de "teórico" ou "analista teórico" à de "intelectual". Esta última é mais ampla. O teórico é um intelectual, mas o intelectual nem sempre é um teórico. O intelectual (e, portanto, o teórico) sente que tem o direito de opinar sobre os movimentos. Não é seu direito, é seu dever. Alguns intelectuais vão mais além e se transformam nos novos "comissários políticos" do pensamento e da ação, e distribuem títulos de "bom" e "mau. Seu "julgamento" tem a ver com o lugar no qual estão e com o lugar no qual aspiram estar. Nós achamos que um movimento não deve "devolver" os juízos que recebe, e classificar os intelectuais como "bons" ou "maus", de acordo com a forma pela qual eles classificam o movimento. O antiintelectualismo nada mais é a não ser uma própria apologia incompreendida, e, como tal, define um movimento como "infantil". Nós acreditamos que a palavra deixa uma marca, as marcas definem rumos, os rumos implicam definições e compromissos. Aqueles que comprometem a sua palavra a favor ou contra um movimento, não só têm o dever de dizê-la, como também o de "afiá-la" pensando em seus objetivos. "A favor de que?" e "contra o que?" são perguntas que devem acompanhar a palavra. Não para calá-la ou baixar seu volume, mas sim para completá-la e torná-la efetiva, ou seja, para que se ouça o que se fala por quem deve ouvi-la. Produzir teoria a partir de um movimento social ou político não é a mesma coisa do que fazer isso a partir da academia. E não digo "academia" no sentido de assepsias ou "objetividade" científica (inexistentes); mas só para assinalar o lugar de um espaço de reflexão e produção intelectual "fora" de um movimento. E "fora" não quer dizer que não haja "simpatias" ou "antipatias", mas sim que esta produção intelectual não se dá a partir do movimento, mas sim sobre ele. Assim, o analista acadêmico avalia e julga coisas boas e ruins, acertos e erros dos movimentos passados e presentes, e, além do mais, arrisca profecias sobre trajetos e destinos. Às vezes acontece que alguns dos analistas da academia aspiram a dirigir um movimento, ou seja, que o movimento siga suas diretrizes. Aí, a reclamação fundamental do acadêmico, é a de que o movimento não o "obedece", de forma tal que todos os "erros" do movimento se devem, basicamente, ao fato de que não vêem com clareza o que para o acadêmico é evidente. Falta de memória e desonestidade costumam imperar (nem sempre, claro) nestes analistas de escritório. Um dia dizem uma coisa e predizem algo, noutro dia acontece o contrário, mas o analista perdeu a memória e volta a teorizar fazendo caso omisso do que disse antes. Não só; além disso, é desonesto porque não se dá ao trabalho de respeitar os seus leitores ou ouvintes. Nunca dirá "ontem disse isso e não aconteceu ou aconteceu o contrário, me enganei". Preso no "hoje" da mídia, o teórico de escritório aproveita para "esquecer". Na teoria, este acadêmico produz o equivalente à sobra de comida do intelecto, ou seja, não alimenta, só prende. Outras vezes, um movimento supre seu espontaneismo com o apadrinhamento teórico da academia. A solução costuma ser mais prejudicial do que a falta. Quando a academia se engana, "esquece"; quando o movimento se engana, fracassa. Às vezes, a direção de um movimento procura um "corte teórico", ou seja, algo que avalize e dê coerência à sua prática, e procura a academia para se abastecer dela. Nestes casos, a teoria nada mais é a não ser uma apologia acrítica com um toque de retórica. Nós acreditamos que um movimento deve produzir sua própria reflexão teórica (atenção: não sua apologia). Nela pode incorporar o que é impossível a um teórico de escritório, a saber, a prática transformadora deste movimento. Nós preferimos ouvir e discutir com aqueles que analisam e refletem teoricamente nos e com os movimentos ou organizações, e não fora deles ou, o que é pior, às custas destes movimentos. Contudo, nos esforçamos para ouvir todas as vozes, prestando atenção não a quem fala, mas sim a partir de onde fala. Em nossas reflexões teóricas, falamos do que vemos como tendências, não dos fatos consumados, nem inevitáveis. Tendências que não só não têm se transformado em algo homogêneo e hegemônico (ainda), mas sim que podem (e devem) ser revertidas. Nossa reflexão teórica enquanto zapatistas não costuma ser sobre nós mesmos, mas sim sobre a realidade na qual nos movemos. E, além do mais, é de caráter aproximado e limitado no tempo, no espaço, nos conceitos e na estrutura destes conceitos. Por isso, no que dizemos e fazemos, rechaçamos as pretensões de universalidade e eternidade. As respostas às perguntas sobre o zapatismo não estão em nossas reflexões e análises teóricas, mas sim em nossa prática. E, no nosso caso, a prática tem uma forte carga moral, ética. Ou seja, tentamos (nem sempre da forma acertada, claro) uma ação que não só esteja de acordo com uma análise teórica, como também, e sobretudo, de acordo com o que consideramos que é nosso dever. Tratamos de ser coerentes, sempre. Talvez por isso não somos pragmáticos (outra forma de dizer "uma prática sem teoria e sem princípios"). As vanguardas sentem o dever de dirigir algo o alguém (e neste sentido guardam muitas semelhanças com os teóricos da academia). As vanguardas se propõem a conduzir e trabalhar para isso. Algumas estão até dispostas a pagarem os custos dos erros e desvios de sua ação política. A academia não. Nós sentimos que nosso dever é iniciar, continuar, acompanhar, encontrar e abrir espaços para algo e para alguém, incluídos nós. O percorrer, até meramente enunciativo, das diferentes resistências numa nação ou no planeta não é só um inventário, mas aí se adivinham, mais do que presentes, futuros. Os que são parte deste percurso e de quem faz o inventário, podem descobrir coisas que aqueles que somam e subtraem nos escritórios das ciências sociais não conseguem ver, saber, que são importantes, sim, o caminhante e o seu passo, mas o que importa é sobretudo o caminho, o rumo, a tendência. Ao assinalar e analisar, ao discutir e polemizar, não fazemos isso só para saber o que acontece e entendê-lo, como também, para tratar de transformá-lo. A reflexão teórica sobre a teoria se chama "Metateoria". A Metateoria dos zapatistas é nossa prática. II. O Estado Nacional e a Polis. No calendário agonizante dos Estados Nacionais, a classe política era quem tinha o poder de decisão. Um Poder que levava em consideração sim o poder econômico, ideológico, social, mas mantinha uma relativa autonomia diante deles. Esta autonomia relativa lhe dava a capacidade de "ver mais além" e conduzir as sociedades nacionais para este futuro. Neste futuro, o poder econômico não só continuava sendo poder, como era mais poderoso. Na arte da política, o artista da polis, o governante, era um condutor especializado, conhecedor das ciências e dar artes humanas, incluída a militar. A sabedoria do governar consistia no adequado manejo dos vários recursos de condução do Estado. O fato de recorrer mais ou menos a um ou a vários destes recursos, definia o estilo de governo. Administração balanceada, política e repressão, uma democracia avançada. Muita política, pouca administração e uma repressão oculta, um regime populista. Muita repressão e nada de política e administração, uma ditadura militar. Naqueles tempos, na divisão internacional do trabalho, homens (ou mulheres) de Estado como governantes eram típicos dos países de capitalismo desenvolvido; os países de capitalismo deformado tinham governos de gorilas. As ditaduras militares representavam o verdadeiro rosto da modernidade: um rosto animal, sedento de sangue. As democracias não eram só uma máscara que escondia esta essência brutal, mas também preparavam as nações para uma nova etapa onde o dinheiro encontraria melhores condições de crescimento. A globalização, ou seja, a mundialização do mundo, não é marcada só pela revolução tecnológica digital. A sempre presente vontade internacionalista do Dinheiro encontrou meios e condições para destruir os entraves que lhe impediam de realizar sua vocação: conquistar todo o planeta com a sua lógica. Alguns destes entraves, as fronteiras e os Estados Nacionais, sofreram uma guerra mundial (a IV). Os Estados Nacionais se deparam com esta guerra quando faltam recursos econômicos, políticos, militares, ideológicos e, como o demonstram as guerras recentes e os tratados de livre comércio, defesas jurídicas. A história não terminou com a queda do Muro de Berlim e a derrubada do campo socialista. A Nova Ordem Mundial continua sendo um objetivo na ordem de batalha do dinheiro, mas no campo jaz, agonizando e esperando a chegada de ajuda, o Estado Nacional. Chamamos "sociedade do Poder" o coletivo de direção que suplantou a classe política no tomar as decisões fundamentais. Trata-se de um grupo que não detém só o poder econômico e não só numa nação. Mas que, aglutinada organicamente (segundo o modelo da "sociedade anônima"), a "sociedade do Poder" se forma ao partilhar metas e métodos comuns. Ainda em processo de formação e consolidação, a "sociedade do Poder" trata de encher o vazio deixado pelos Estados Nacionais e suas classes políticas. A "sociedade do Poder" controla instituições financeiras (e, de conseqüência, países inteiros), meios de comunicação, corporações industriais e comerciais, centros educacionais, exércitos e polícias públicas e privadas. A "sociedade do Poder" deseja um Estado Mundial com um governo Supranacional, mas não trabalha na sua construção. A globalização tem sido uma experiência traumática para a humanidade, sim, mas, sobretudo, para a sociedade do Poder. Aflita pelo esforço de passar, sem mediação alguma, dos bairros ou comunidades à Hiper-Polis, do local ao global, e enquanto se constitui o governo Supranacional, a sociedade do Poder se refugia, outra vez, num Estado Nacional que desfalece. O Estado Nacional da Sociedade do Poder só aparenta um vigor que tem muito de esquizofrenia. Um holograma, é isso que é o Estado Nacional nas metrópoles. Mantido por décadas como referencial de estabilidade, o Estado Nacional tende a deixar de existir, mas seu holograma continua sendo alimentado pelos dogmas que lutam para preencher o vazio produzido não só pela globalização, mas também reafirmado por ela. Para o Poder, a mundialização do mundo no tempo e no espaço é algo que ainda não foi digerido. Os "outros" já não estão em "outro" lugar, mas sim por toda parte e a qualquer hora. E para o Poder o "outro" é uma ameaça. Como enfrentar esta ameaça? Levantando o holograma da Nação e denunciando o "outro" como agressor. Não foi um dos argumentos do senhor Bush para as guerras no Afeganistão e no Iraque o fato de ambos ameaçarem a "nação" norte-americana? Mas, fora da "realidade"criada pela CNN, as bandeiras que tremulam em Kabul e Bagdá não são as das listas e estrelas, mas sim das grandes corporações multinacionais. No holograma do Estado Nação, a falácia por excelência da modernidade, ou seja, "a liberdade individual" está presa num presídio que não é menos opressor pelo fato de ser global. O indivíduo se deforma de tal maneira que nem a imagem dos "heróis" de antigamente pode oferecer-lhe a menor esperança de sobressair. O "selfmade man" não existe mais, e, como é impensável pensar em "selfmade corporation", a expectativa social está à deriva. Qual é a esperança? Voltar à disputa pela rua, pelo bairro? Tampouco a fragmentação tem sido tão impiedosa e descontrolada que nem mesmo estas unidades mínimas de identidade se mantêm estáveis. A família-casa? Onde e como? Se a televisão entrou como rainha pela porta principal, a internet entrou como golpista pela brecha do espaço cibernético. Dias atrás, quase cada casa do planeta foi invadida pelas tropas britânicas e norte-americanas que ocuparam o Iraque. O Estado Nacional que agora se outorga o título de "a mão divina de Deus (os Estados Unidos da América) existe só na televisão, no rádio, em alguns jornais e revistas..., e nos cinemas. Na fábrica dos sonhos dos grandes consórcios da mídia, os presidentes são inteligentes e simpáticos, a justiça triunfa sempre; a comunidade derrota o tirano, a rebeldia é a resposta pronta e efetiva diante da arbitrariedade, e o "viveram muito felizes" continua sendo o final prometido à sociedade nacional. Mas, na realidade, as coisas são exatamente o contrário. Onde estão os heróis da invasão do Afeganistão? Onde os da ocupação do Iraque? Quer dizer, o 11 de setembro de 2001 teve seus heróis, os bombeiros e os habitantes de Nova Iorque trabalhando para resgatar as vítimas do delírio messiânico. Mas estes heróis reais não servem ao Poder, por isso foram rapidamente esquecidos. Para o Poder, o "herói" é aquele que conquista (ou seja, destrói), não aquele que salva (ou seja, constrói). A imagem do bombeiro coberto de cinzas, trabalhando entre as torres gêmeas de Nova Iorque, foi substituída pela do tanque de guerra puxando a estátua de Hussein em Bagdá. A polis moderna (uso o termo "polis" no lugar de "cidade" para sublinhar que me refiro a um espaço urbano de relações econômicas, ideológicas, culturais, religiosas e políticas) só tem da clássica (de Platão) a imagem superficial e frívola das ovelhas (o povo) e do pastor (o governante). Mas a modernidade revolveu completamente a imagem platônica. Trata-se agora de um complexo industrial: algumas ovelhas se tosquiam enquanto outras se sacrificam para obter comida, as "doentes" são isoladas, eliminadas e "queimadas" para que não contaminem o resto. O neoliberalismo se apresentou como a administração eficiente desta mescla de curral-matadouro que é a polis, mas sublinhando que a eficiência só era possível rompendo as fronteiras da polis e estendendo-as (ou seja, invadindo) a todo o planeta: a Hiper-Polis. Mas acontece que o "administrador" (o governante- pastor) enlouqueceu e decidiu sacrificar todas as ovelhas, ainda que o dono não possa comer todas elas... e mesmo que não sobrem ovelhas para tosquiar e nem para sacrificar amanhã. O velho político, o de antigamente (e não me refiro ao de "antes de Cristo", mas sim ao do final do século XX), se especializava em manter as condições para o crescimento do rebanho e para que houvesse ovelhas para uma e outra coisa, e, além disso, para que as ovelhas não se rebelassem. O neopolítico já não é um pastor "culto", é um lobo bobalhão e ignorante (que nem sequer se esconde por trás de uma pelo de cordeiro) que se conforma em comer parte do rebanho que lhe cedem, mas que abandonou suas tarefas fundamentais. O rebanho não tardará a desaparecer... e a se rebelar. Seria possível pensar que o que está em jogo não é "humanizar" o curral-fábrica-matadouro da polis moderna, mas sim de destruir esta lógica, arrancando de si a pele de ovelha e, sem ovelhas, descobrir que o "pastor-carniceiro-tosquiador" não só é inútil como estorva? A lógica dos Estados Nacionais era (em grandes linhas): uma polis-cidade aglutina um território (e não o contrário), uma província aglutina uma série de polis, uma nação aglutina uma série de províncias. Logo, a polis-cidade era a célula básica do Estado Nação e a polis-capital impunha sua lógica ao resto das polis. Havia então uma espécie de causa comum, um ou vários elementos que aglutinavam esta Polis dentro de si mesma, assim como havia elementos que aglutinavam o Estado Nação (território, língua, moeda, sistema jurídico-político, cultura, história, etc.). Estes elementos têm sido corroídos e dinamitados (muitas vezes não em sentido figurado) pela globalização. Mas o que dizer da polis durante o atual declínio (quase até o desaparecimento) do Estado Nacional? E, o que veio primeiro? A Polis ou o Estado Nacional? O desgaste do primeiro ou do segundo? Não importa, pelo menos pelo que vou dizer agora. Se a fragmentação (e, de conseqüência, o desaparecimento tendencial) do Estado Nacional se deve à fragmentação da polis ou vice-versa, não é o tema sobre o qual vou falar. Como no Estado Nacional, na Polis tem se extraviado o que a aglutinava. Cada Polis nada mais é a não ser uma fragmentação desordenada e caótica, uma superposição de polis que não só são diferentes entre si, mas que, não poucas vezes, são contrárias. O Poder do Dinheiro exige um espaço especial que não seja só espelho de sua grandeza e bem-estar, mas que, além disso, o proteja das "outras" polis (os dos outros) que estão ao seu redor e a "ameaçam". Estas "outras" polis não são parecidas às comunidades bárbaras de antigamente. A Polis do Dinheiro trata de incorporá-las à sua lógica e precisa delas, mas, ao mesmo tempo, tem medo delas. Onde antes havia um Estado Nacional (ou disputando ainda o espaço com ele) há agora um acúmulo desordenado de Polis. As Polis do Dinheiro que existem pelo mundo são as "casas" da "sociedade do Poder". Contudo, onde antes havia um sistema jurídico e institucional que regulava a vida interna dos Estados Nacionais e as relações entre eles (estrutura jurídica internacional) agora não há nada. O sistema jurídico internacional é obsoleto, e seu lugar está sendo ocupado pelo sistema "jurídico" espontâneo do Capital: a concorrência brutal e impiedosa com qualquer meio, entre os quais, a guerra. O que são os programas de segurança pública das cidades a não ser a proteção dos que têm tudo diante dos que não têm nada? "Mutatis mutandi", os programas de segurança nacional já não são nacionais diante das outras nações, mas sim contra tudo e em qualquer lugar. A imagem da cidade cercada (e ameaçada) por cinturões de miséria e a imagem da nação hostilizada por outros países começaram a se transformar. A pobreza e a inconformidade (estas "outras" que não têm o bom gosto de desaparecer) já não estão na periferia, mas podem ser vistas sim quase em qualquer lugar das cidades... e dos países. O que sublinho é que o "reordenar", praticado nos governos da polis, destes fragmentos como ensaio ou "treinamento" para o reordenar nacional, é inútil. Porque o que está em jogo, mais do que reordenar, é isolar os fragmentos "nocivos" e atenuar o impacto que podem ter suas reclamações, lutas e resistências na polis do dinheiro. Quem governa a cidade, só administra o processo de fragmentação da polis, à espera de passar a administrar o processo de fragmentação nacional. A privatização do espaço nas cidades nada mais é a não ser o medo violando suas próprias disposições. A polis tem se transformado num espaço anárquico de ilhas. A "convivência" entre os poucos é possível pelo medo comum que eles têm do "outro". Viva as ruas privadas! Virão as colônias privadas, as cidades, as províncias, as nações, o mundo... tudo privado, ou seja, isolado e protegido do "outro". Mas o vizinho que tem posses não demorará a ser um "outro". O que a guerra nuclear não fez, podem fazê-lo as corporações. Destruir tudo, inclusive o que lhes dá riqueza. Um mundo onde não caiba nenhum mundo, nem sequer o próprio. Este é o projeto da Hiper-Polis que já se levanta sobre os escombros do Estado Nação. III. A política. Não existem mais causas nacionais que aglutinem as polis, as nações, as sociedades? Ou não há políticos capazes de levantar estas causas? O descrédito da política é mais do que isso: tem ódio e rancor. O cidadão comum está passando, tendencialmente, da indiferença diante dos atropelos da classe política, a um repúdio que adquire formas cada vez mais "expressivas". O "rebanho" resiste à nova lógica. O político de antigamente definia a tarefa comum. O moderno tenta e fracassa, por que? Talvez porque ele mesmo tem lavrado sua falta de prestígio ou, melhor, mais do que prostituir uma causa tem prostituído uma ação. Carente de uma realidade como ponto de referência, a classe política moderna fabrica para si um holograma não do tamanho de suas aspirações, mas sim do tamanho do seu calendário atual: quem governa um povoado não tem renunciado a governar uma cidade, uma província, uma nação, o mundo inteiro, só que é o seu hoje a determinar um povo... e tem que esperar as próximas eleições para o passo seguinte. Se antes o Estado Nacional tinha a capacidade de "enxergar mais além" e projetar as condições necessárias para que o capital se reproduzisse "in crescendo" e para ajudá-lo a sair de suas crises periódicas, a destruição de suas bases fundamentais lhe impede de dar conta desta tarefa. O "barco" social encontra-se à deriva e o problema não é só a falta de um capitão competente, acontece que roubaram o leme e este não está em nenhum lugar. Se o dinheiro foi a dinamite, os "operários" da demolição foram os políticos. Ao destruir as bases do Estado Nacional, a classe política tradicional destruiu também sua desculpa: agora os todo-poderosos atletas da política olham para si surpresos e incrédulos... um comerciante imbecil, sem nenhuma noção das artes do Estado, nem sequer os tem derrotado, simplesmente os suplantou. Esta classe política tradicional é incapaz de reconstruir as bases do Estado Nacional. Como ave de rapina, se conforma em alimentar-se dos despojos dos países, e se ceva na lama e no sangue sobre os quais se constrói o império do dinheiro. Enquanto engorda, o Senhor do Dinheiro espera à mesa... A liberdade do mercado sofreu uma metamorfose terrível: agora você é livre de escolher a que centro comercial ir, mas a loja é a mesma e a marca do produto também. A liberdade falaz originária da tirania da mercadoria, "livre oferta e livre procura" têm virado pedacinhos. As bases da "democracia ocidental" foram dinamitadas. Sobre seus escombros se realizam campanhas e eleições. A pirotecnia eleitoral brilha lá no alto, tanto que não chega sequer a iluminar um pouco as ruínas que cobrem a ação política. Da mesma forma, a coluna vertebral da ação governamental, a Razão de Estado, não serve mais, agora é a Razão de Mercado a dirigir a política. Para que empregar políticos se os mercadólogos entendem melhor a nova lógica do Poder? O político, ou seja, o profissional do Estado, tem sido suplantado pelo gerente. Assim, a visão de Estado se mistura com a visão de mercadotecnia (o gerente nada mais é a não ser o capataz de antigamente, que "acredita" firmemente que o sucesso da empresa é o seu próprio sucesso) e o horizonte se torna menor, não só em distância, também em sua dimensão. Os deputados e senadores já não fazem leis, este trabalho é desempenhado pelos "lobbys" de assessores e consultores. Órfãos e viúvos, os políticos tradicionais e seus intelectuais arrancam os cabelos (os que ainda têm) e, vez por outra, ensaiam novas desculpas para oferecê-las no mercado de idéias: é inútil, aí sobram vendedores e não há nenhum comprador. Procurar a classe política tradicional como "aliada" na luta de resistência é um bom exercício... de saudade. Procurar os neopolíticos é um sintoma de esquizofrenia. Lá em cima, não há nada a fazer, a não ser julgar que, talvez, se pode fazer algo. Há quem se dedica a imaginar que o leme existe e a disputar a sua posse. Há quem procura o leme, certo de que ficou em algum lugar. E há quem faz de uma ilha não um refúgio para a auto-satisfação, mas sim um barco para se encontrar com outra ilha e com outra e com outra... IV. A guerra. No estresse pós-moderno da sociedade do Poder, a guerra é o divã. A catarse de morte e destruição alivia, mas não cura. As crises atuais são piores do que as do passado, e, de conseqüência, a solução radical que o Poder dá pra elas, a guerra, é pior do que as de antigamente. Agora, a maior fraude da história da humanidade, a globalização, nem sequer tem a delicadeza de tratar de justificar-se. Milhares de anos depois do surgimento da palavra, e com ela, da razão argumentada, a força volta a ocupar o lugar decisivo e decisório. Na história da consolidação do Poder, a convivência humana se transformou em coexistência. E esta em guerra. O par dominante-dominado define agora a comunidade mundial e pretende ser o novo critério de "humanidade" inclusive para os fragmentos mais dispersos da sociedade global. O vazio deixado pelos homens de Estado é preenchido, no holograma do Estado Nacional, por gerentes e arrivistas; os militares das empresas (uma nova geração que não só lê e aplica Sun Tzu, mas que tem os meios materiais para realizar seus movimentos e manobras) incorporam a guerra militar (para diferenciá-la das guerras econômicas, ideológicas, psicológicas, diplomáticas, etc.) como mais um elemento de sua estratégia de mercado. A lógica do mercado (lucros cada vez maiores e a qualquer custo) se impõe à velha lógica da guerra (destruir a capacidade de combate do oponente). A legislação internacional, então, atrapalha e, ou deve ser ignorada, ou deve ser destruída. Acabou-se o tempo das justificativas plausíveis, agora nem sequer se dá muita ênfase às justificativas "morais" e inclusive "políticas" da guerra, os organismos internacionais são monumentos inúteis e onerosos. Para a sociedade do Poder, o ser humano pode ser cliente ou delinqüente. Para incluir o primeiro e eliminar o segundo, o político dá um rosto legal à violência ilegítima do Poder. A guerra já não precisa de leis que a "justifiquem" ou "avalizem", basta que os políticos a declarem e assinem as ordens. Se o governo dos Estados Unidos tem se outorgado o papel de "polícia" da Hiper-Polis, temos que nos perguntar que ordem quer manter, que propriedade deve defender, que delinqüentes deve prender e que lei dá coerência e ordem ao seu agir. Ou seja, quais são os "outros" frente aos quais a Sociedade do Poder deve se proteger. Para conduzir uma guerra, não há pior general do que um militar, por isso, antigamente, os grandes generais, os vencedores das guerras (não só os que lutam nas batalhas) eram políticos, homens de Estado. Mas se já não há mais destes, então, quem está dirigindo a batalha atual da conquista mundial? Duvido que alguém, em sã consciência, pode sustentar que Bush ou Rumsfeld dirigiram a guerra no Iraque. De forma tal que, ou são militares os que dirigem ou não são militares. Se o forem, o resultado poderá ser visto em breve. O militar não se dá por satisfeito até que não destrói totalmente o seu oponente. Totalmente, ou seja, não derrotá-lo, mas sim fazê-lo desaparecer, acabar com ele, aniquilá-lo. Desta forma, a solução das crises só é o prelúdio de uma crise maior, de um horror que é impossível descrever com palavras. Se não são militares, então, quem dirige? As corporações, poderia se responder. Mas estas têm lógicas que se sobrepõem às dos indivíduos e os conduzem. Como um ente com vida e inteligência própria, a corporação ensina a seus membros a ir numa determinada direção. Qual? A do lucro. Nesta lógica, o dinheiro se dirige onde obtém melhores condições de lucro rápido, crescente e contínuo. Então, irá se dirigir onde há menos ou onde há mais? Sim, tendencialmente, a corporação irá contra outra corporação. O desfecho da guerra no Iraque resolverá a crise que enfrentam as grandes corporações? Não, ou, pelo menos, não de imediato. O efeito anulador de um conflito para as expectativas do Estado-Nacional-Com-Aspirações-A- Ser-Supracnacional tem a duração de um spot de televisão. "Já ganhamos no Iraque", dirão os cidadãos dos Estados Unidos, "E agora? Outra guerra? Aonde? É esta a nova ordem mundial? Uma guerra por toda parte a qualquer hora, interrompida só pelos comerciais?" V. A Cultura. Prostrada no divã da guerra, a sociedade do Poder confunde seus complexos e fantasmas. Uns e outros têm muitos nomes e muitos rostos, mas um denominador comum: "o outro". Este "outro" que, até antes da globalização, estava longe no tempo e no espaço, mas que a construção desordenada da Hiper-Polis trouxe para o "backyard" o quintal dos fundos da sociedade do Poder. A cultura do "outro" torna-se espelho odiado. Mas não porque reflete o poder em sua crueldade desumana, mas sim porque conta a história do "outro". O diferente que não só não depende do "eu"do Poder, mas que tem também sua própria história e esplendor sem sequer ter se dado conta da existência do "eu" ou ter suposto seu futuro aparecimento. Na Sociedade do Poder, o fracasso do homem na convivência, seu ser no ser coletivo, oculta-se por trás do sucesso individual. Mas este último, por sua vez, esconde que este sucesso é possível pela destruição do outro, do ser coletivo. Durante décadas, no imaginário do Poder, o coletivo ocupou o lugar do mau, arbitrário, enraivecido, cruel, implacável. O "outro" é o rosto do rebelde Lúcifer na nova "Bíblia" do Poder (que não prega a redenção, mas sim a submissão) e é necessário expulsá-lo do novo paraíso. No papel da espada de fogo, as "bombas inteligentes". O rosto do "outro" é sua cultura, sua diferença está aí. Língua, crenças, valores, tradições, histórias se tornam corpo coletivo numa nação e lhe permitem diferenciar-se das outras e, com base nesta diferença, relacionar-se com as demais. Uma nação sem cultura é como um ser sem rosto, ou seja, sem olhos, sem ouvidos, sem nariz, sem boca... e sem cérebro. Destruir a cultura do "outro" é a forma mais contundente de eliminá-lo. O saque das riquezas culturais no Iraque não foi produto da desatenção ou do desinteresse das tropas de ocupação. Foi mais uma ação militar do plano de guerra. Nas grandes guerras, os grandes tiranos e genocidas dedicam esforços especiais à destruição cultural. A semelhança entre a fobia e a cultura de Hitler e a de Bush não se deve ao fato deles manifestarem sintomas comuns de loucura. A semelhança está nos projetos de mundialização que animaram o primeiro e dirigem o segundo. A cultura é uma das poucas coisas que ainda mantêm respirando o Estado Nacional. A eliminação da cultura será o tiro de misericórdia. Ninguém irá participar do funeral, e não por falta de conhecimento, mas sim de "rating". VI. Manifestos a manifestações. O ato guerreiro que funda o novo século não é o desmoronamento das torres gêmeas, nem tampouco a queda sem graça e sem espetáculo da estátua de Hussein. O século XXI arranca com o "NÃO À GUERRA" globalizado que devolveu à humanidade sua própria essência e a aglutinou ao redor de uma causa. Como nunca antes na história da humanidade, o planeta foi sacudido por este "NÃO". De intelectuais de todos os tamanhos, a moradores analfabetos dos cantos ignorados da terra, o "NÃO" se transformou numa ponte que uniu comunidades, povoados, vilarejos, cidades, províncias, países, continentes. Em manifestos e manifestações, o "NÃO" buscou a demanda da razão diante da força. Ainda que, em parte, este "NÃO" tenha se apagado com a ocupação de Bagdá, há mais esperança do que impotência em seu eco. Contudo, alguns se refugiaram no campo teórico e mudaram a pergunta "o que fazer para deter a guerra?", para esta outra: "Onde será a próxima invasão?". Há quem defende, ingenuamente, que a declaração dos Estados Unidos de que não farão nada contra Cuba demonstra que não se deve temer uma reação norte- americana contra a ilha caribenha. Os desejos do governo norte-americano de invadir e ocupar Cuba são reais, mas são algo mais do que desejos. São planos que já têm trajetos, tempos, contingentes, etapas, objetivos parciais e sucessivos. Cuba não é só um território a conquistar, é, sobretudo, uma afronta. Um amassado intolerável no luxuoso carro da modernidade neoliberal. E os marines são os funileiros. Se estes planos se concretizarem, veremos logo, como agora no Iraque, que o objetivo não era derrotar o senhor Castro Ruz, nem sequer impor uma mudança de regime político. A invasão e ocupação de Cuba (ou de qualquer outro ponto da geografia mundial) não precisam de intelectuais, "surpresos" pelas ações do Estado Nacional (talvez o último a manifestar-se como tal na América Latina) para controle interno. Se o governo norte-americano não se comoveu sequer pelo fraco rechaço da ONU e dos governos do primeiro mundo, nem ficou mudo com a condenação explícita de milhões de seres em todo o planeta, não o animarão e nem o deterão as palavras de rechaço ou alento dos intelectuais (por falar de Cuba, foi aprendida, recentemente, a "heróica" ação dos soldados israelenses: executaram um palestino com um tiro na nuca. O palestino tinha 17 meses de idade. Houve alguma declaração, algum manifesto com assinaturas indignadas? Horror seletivo? Cansaço do coração? O "condenamos em qualquer lugar e quem for" já inclui, e para sempre, todas e cada uma das doses de terror que os de cima fazem engolir aos de baixo? Basta dizer "não" uma vez?). Tampouco irão detê-lo as mobilizações de protesto, por massivas e seguidas que sejam, mesmo no interior dos Estados Unidos. Quero dizer: NÃO SÓ. Um elemento fundamental é a capacidade de resistência do agredido, a inteligência em combinar formas para resistir, e, algo que pode soar "subjetivo", a decisão dos seres humanos agredidos. O território a conquistar (chame-se Síria, Cuba, Irã, montanhas do Sudeste Mexicano) teria que se transformar assim num território de resistência. E não me refiro à quantidade de trincheiras, armas, arapucas e sistemas de segurança (que, contudo, também são necessários), mas sim à disposição (a "Moral", dirão alguns) destes seres humanos para resistir. VII. A resistência. As crises precedem o conscientizar-se de sua existência, mas a reflexão sobre os resultados ou as saídas destas crises se converte em ações políticas. O rechaço a esta classe política não é um rechaço ao fazer política, mas sim uma forma de fazê-la. O fato de que, no horizonte muito limitado do calendário do Poder, não apareça definida uma nova forma de fazer política não significa que esta já não esteja em andamento em poucos ou em muitos dos fragmentos das sociedades no mundo todo. Na história da humanidade, todas as resistências têm parecido inúteis não só na véspera, mas também na já avançada noite da agressão, mas o tempo corre, paradoxalmente, a seu favor se ela for concebida para isso. Poderão cair muitas estátuas, mas se a decisão de gerações se mantém e se alimenta, o triunfo da resistência é possível. Não terá data certa e nem desfiles luxuosos, mas o desgaste previsível de um aparato que transforma sua própria máquina em projeto de uma nova ordem acabará sendo total. Não estou pregando a esperança vazia, mas sim lembrando um pouco da história mundial e, em cada país, um pouco de história nacional. Vamos vencer, não porque seja nosso destino ou porque assim está escrito em nossas respectivas bíblias rebeldes ou revolucionárias, mas sim porque estamos trabalhando e lutando para isso. Para isso é necessário um pouco de respeito para o outro que do outro lado resiste em seu ser outro, um muito de humildade para lembrar que ainda se pode aprender muito deste ser outro, e sabedoria para não copiar, mas sim produzir uma teoria e uma prática que não incluam a soberba em seus princípios, mas sim que reconheça seus horizontes e as ferramentas que servem para estes horizontes. Não se trata de consolidar as estátuas existentes, mas sim de trabalhar por um mundo onde as estátuas sirvam só para que os pássaros caguem nelas. Um mundo onde caibam muitas resistências. Não uma internacional da resistência, mas sim uma bandeira de muitas cores, uma melodia com muitos tons. Caso pareça desafinada é só porque o calendário de baixo ainda não preparou a partitura onde cada nota encontrará o seu lugar, seu volume e, sobretudo, se ligará com as outras notas. A história está longe de acabar. No futuro, as convivências serão possíveis, não pelas guerras que pretenderam dominar o outro, mas sim pelo "NÃO" que deram aos seres humanos, como antes na pré-história, uma causa comum e, com ela, uma esperança: a da sobrevivência... pela humanidade, contra o neoliberalismo. Das montanhas do sudeste mexicano. Subcomandante Insurgente Marcos. Rebeldia, maio de 2003
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