"Money-teísmo" ameaça a democracia, diz Samir Amin
01/09/2002
- Opinión
A economia dos Estados Unidos é totalmente parasitária, e esta é a sua grande
debilidade, diz o professor e economista egípcio Samir Amin, coordenador do Fórum do
Terceiro Mundo, organização independente, com sede no Senegal, que reúne intelectuais
da África, Ásia e América Latina, e organiza debates cuja meta é a busca de
alternativas para o neoliberalismo. A sociedade americana — diz Amin — sobrevive
graças ao capital injetado no país pelo resto do mundo, por meio dos mecanismos de
cobrança da dívida externa, da pilhagem de recursos naturais, do controle dos meios de
comunicação e dos centros reguladores do fluxo financeiro. Seu domínio é assentado
sobre o poderio militar, e é isso que explica o seu interesse em manter funcionando a
Otan, assim como a necessidade de intervir militarmente em todo o planeta. Para Amin,
o “neoliberralismo” — ou “money-teísmo” — é contraditório com a democracia, já que, ao
privilegiar o mercado, tira da sociedade a possibilidade de decidir sobre a vida
política e os investimentos sociais.
O professor participou, nos dias 13 e 14 de junho, do seminário Novos Paradigmas
do Desenvolvimento, a primeira homenagem da Universidade de São Paulo ao economista
Celso Furtado. O seminário, coordenado pelo sociólogo Glauco Arbix, também contou com
a participação de outros economistas e pensadores importantes do mundo contemporâneo,
incluindo o indiano Deepak Nayyar, reitor da Universidade Jawaharlal Nehru de Nova
Delhi, e o francês Ignacy Sachs, diretor da Escola de Estudos Superiores em Ciências
Sociais de Paris. Entre uma atividade e outra, Amin concedeu uma entrevista exclusiva
a Caros Amigos.
José Arbex Jr. — Nos documentos que apresentam este seminário você é descrito
como neomarxista. Você se considera um neomarxista?
Samir Amin — Eu me considero marxista. Ao longo da história, houve diferentes
interpretações do marxismo. Cada uma delas tinha a pretensão de ser o “verdadeiro”
marxismo. Eu não creio que o marxismo deva ficar restrito apenas à leitura dos
escritos de Karl Marx, como se ele fosse um ídolo, nem aos autores considerados por
esse ou aquele como clássicos, como Lênin, Trotsky, Stalin e Mao, e sim, olhando de
frente para os problemas, tanto os do passado como os de hoje. Nem tudo o que foi dito
ou escrito sob a bandeira do marxismo é, necessariamente, sagrado e bom. Eu tenho uma
abordagem que talvez seja um pouco mais aberta, mas eu penso que nada do que eu tento
conceituar entra em contradição com os pontos e métodos básicos do marxismo.
José Arbex Jr. — Em suas análises, você denuncia o imperialismo não como um
conceito leninista ultrapassado, mas como um processo político real e vivo. Você
poderia explicar?
Samir Amin — Lênin, de fato, classificou o imperialismo com a última fase do
capitalismo. Seu estudo levou em conta as mudanças qualitativas que ocorreram em
certos países capitalistas — europeus basicamente —, no fim do século dezenove, quando
eles passaram de um capitalismo industrial competitivo para um capitalismo de
oligopólios e monopólios. Isso se combinou com a partilha da África e da Ásia entre os
centros capitalistas, que se tornaram imperialistas. Lênin, então, concluiu que esse
sistema seria instável, e acabaria levando os seus protagonistas à guerra, o que
acabou acontecendo. Mas o capitalismo sempre foi um sistema imperialista global, que
se manteve em funcionamento segundo um processo de polarização.
José Arbex Jr. — Explique...
Samir Amin — A polarização existe desde o início do capitalismo moderno, desde
1492, quando Cristovão Colombo fincou sua bandeira no continente americano. Durante
três séculos, o período mercantilista, o padrão da globalização foi construído nos
termos do capitalismo dos países a leste do Atlântico (Inglaterra, França, Holanda,
Espanha, Portugal), tornando a América sua periferia, e a África a periferia da
periferia, que gerava os escravos. Isso começou a criar as condições para um sistema
desigual de globalização. Daí, tivemos a primeira Revolução Industrial, no final do
século 18, que, por um período de cerca de 150 anos — digamos de 1800 a 1945, 1950 —,
permitiu o desenvolvimento do capitalismo como um sistema global. Com a Revolução
Industrial, veio um segundo estágio de polarização, baseado no monopólio da
industrialização nos centros (Europa central e ocidental, América do Norte, e pouco
depois o Japão). As outras áreas, gradualmente integradas ao sistema global, como Ásia
e África, permaneceram não industriais. Isso, grosso modo, até a Segunda Guerra, com
alguns focos de industrialização aqui e ali.
Depois da Segunda Guerra, como resultado das mudanças globais no balanço das
forças, e dos movimentos nacionais na África, Ásia e na América Latina, essas áreas da
periferia entraram para a era da industrialização. Agora, estamos em um terceiro
estágio de polarização, com a formação de áreas industrializadas dependentes. Elas
dependem dos monopólios que os centros mantêm das novas tecnologias, do sistema
financeiro global, do acesso que os centros se reservam do acesso ao uso e desperdício
dos recursos naturais para eles mesmos, monopólio dos meios comunicação e o que quer
que esteja associado a política e cultura, e finalmente, mas não menos importante, o
monopólio, basicamente exercido pelos Estados Unidos, de armamento de extermínio de
massa.
Ora, se percebermos a globalização como sinônimo do imperialismo, o imperialismo
tem sido uma característica do capitalismo, desde o primeiro dia até agora. Nós
tivemos imperialismo mercantilista, imperialismo industrial — o clássico modelo
leninista de imperialismo monopolista — e nós temos uma nova onda de imperialismo. Em
cada estágio desses imperialismo, nós percebemos que há sempre o mesmo tipo de
tentativa de legitimizá-lo, ideologicamente. No período mercantilista, catequizando os
índios ou exterminando os índios, como na América do Norte.
José Arbex Jr. - No Brasil, também.
Samir Amin - Aqui também. Na segunda onda, foi a chamada missão civilizatória da
Europa. A onda agora vem em nome de uma suposta democracia.
José Arbex Jr. - Mas o imperialismo, no final do século 19, era multipolarizado.
Hoje é centrado nos Estados Unidos, que mantêm uma posição de hegemonia, mesmo sobre
as outras nações imperialistas. Além disso, há o enquadramento ideológico
neoliberal...
Samir Amin - A utopia liberal — utopia no mau sentido da palavra, retrógrada —
de administrar a sociedade como mercado, a tentativa de submeter as outras dimensões
da realidade social, política e cultural à lógica unilateral do mercado é um projeto
inviável. Mas, houve outras tentativas de realizar esse projeto. Duraram curtos
períodos, que levaram ao caos e depois a mudanças que criaram as condições de novas
faces da expansão capitalista. A última vez que tivemos um projeto liberal
globalizante foi no começo do século 20, na Belle Époque. Veja as similaridades com o
mundo contemporâneo: a Belle Époque aconteceu após uma longa crise estrutural,
associada à Revolução Industrial, que criou mudanças no padrão de organização do
trabalho, deslegitimizando sistemas de poder e formas de organização e criando, dessa
maneira, uma sensação de perplexidade entre as classes trabalhadoras, o povo, as
classes populares. A grande diferença é que o sistema globalizante liberal anterior
era baseado em um imperialismo multicentrado, cujos pólos eram quatro ou cinco países,
ao menos — Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos e talvez, no início, Japão. A
nova onda de globalização, baseada na hegemonia dos Estados Unidos, surgiu após meio
século de bem-estar social nos países capitalistas ocidentais, de socialismo no
Oriente e da formação de sociedades industriais modernizadas no sul, e depois de um
período de relativa estabilização do sistema global e crescimento de cada parte dos
sistema. Essa nova onda está em fase de transição, só que não sabemos em que direção.
José Arbex Jr. — Houve a passagem do sistema multipolar para o monopolar...
Samir Amin — A verdade é que o sistema todo entrou em colapso. Não foi só o
sistema soviético que entrou em colapso, foi também a social-democracia e o sistema de
bem-estar do Ocidente, também a ilusão, o sonho, o projeto populista nacionalista de
tornar modernos os países do sul. A atual globalização é uma espécie de colonização ou
recolonização compartilhada, dominada pelos Estados Unidos e compartilhada por suas
províncias: o Canadá, os europeus ricos e o Japão. Não vejo, hoje, as grandes
contradições entre eles do tamanho que se tinha à época de Lênin. Não há guerra na
agenda entre eles, há interesses mercantis que às vezes entram em conflito, mas não
são prioridade, são de segunda importância.
José Arbex Jr. — É o “superimperialismo” de que falava Karl Kautsky?
Samir Amin — Talvez. Kautsky estava errado em seu tempo, mas talvez ele esteja
certo 50, 100 anos depois, porque não? A questão não é rotular de superimperialismo,
pós-imperialismo. O importante é a análise de seu conteúdo, especificidades e
contradições. O sistema imperialista hoje parece estar unificado, mas se olharmos para
uma característica específica desse sistema, encontramos uma grande diferença entre
esse sistema e o anterior, que é a relação centro-periferia. No sistema que existia no
começo do século 20, os países centrais exportavam capital para as periferias. Sempre
em seu próprio benefício, construíam portos na Arg€PQ
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