Pena de morte
17/02/2002
- Opinión
Os jornais que meu pai levava para casa, ao retornar do trabalho,
consistiam em minha leitura predileta, tão logo passei a dominar, na
década de 1950, o código alfabético. Trazidos de trem, os diários do
Rio só chegavam a Belo Horizonte no início da tarde. Como a TV ainda
não entrara em nossa casa, após o jantar a família reunia-se na sala
de visitas para ler as notícias.
Influenciado pelo americanismo de pós-guerra, acompanhei horrorizado
os passos do casal Rosenberg rumo à cadeira elétrica, acusado de
passar aos russos segredos nucleares. Em setembro de 1949, a União
Soviética explodira sua primeira bomba atômica, detonando nos EUA uma
histeria coletiva, medo de que a próxima caísse sobre a nação que se
considerava imune a um ataque externo.
Leitor de histórias em quadrinhos, aprendi que os EUA estavam
protegidos pelos superpoderes do Capitão América, pela miraculosa
aparição do Super-Homem, pela presteza vigilante da dupla Batman e
Robin. Deus sempre salvava a América.
Julius e Ethel Rosenberg foram apontados como os traidores que
permitiram a Stalin possuir a mais poderosa das armas.
De tanto olhar as fotos em O Globo, gravaram-se em mim os rostos de
Julius, 35 anos, e de Ethel, dois anos mais velha do que ele, na
prisão de Sing Sing, em Nova York. Ele, com óculos de lentes brancas
e um bigode de vassoura que lhe imprimiam aspecto de tabelião
caprichoso. Ela, com os cabelos negros armados sobre o rosto oval, a
boca pequena e o porte robusto. Nunca se provou que eram de fato
espiões, mas o aquecimento da Guerra Fria exigia, para aplacar o
pavor ocidental, um bode expiatório. A pena de morte pareceu-me
apropriada naquele caso. Tratava-se de impedir que a exceção virasse
regra, pondo em risco a segurança do Mundo Livre. Passei dias sob o
impacto da foto do casal amarrado à cadeira elétrica, suas cabeças
cobertas por capacetes repletos de fios, malditos astronautas a
caminho do inferno. Foram executados a 19 de junho de 1953.
O velho buldogue Edgar Hoover, chefe do FBI, felizmente estava a
postos na soleira da porta de nossas casas, defendendo-nos da ameaça
comunista.
Mas não me conformei, pouco depois, com a execução de Caryl Chessman,
também nos EUA. Li suas cartas. Se não me convenci de sua inocência,
não me restava dúvida de que se tratava de um homem recuperado para a
sociedade. Por que matar um criminoso que o cárcere transformara num
intelectual?
Nunca mais aceitei a pena de morte. Um ser humano é um milagre de
Deus e uma obra-prima da natureza. Culpada é a sociedade que faz dele
um monstro e, ao puni-lo, é incapaz de recuperá-lo para o convívio
social. Por isso, fico assustado quando vejo lideranças políticas,
inclusive de esquerda, clamarem por prisão perpétua ou pena de morte.
Não é o peso da sentença que inibe a criminalidade. É a certeza da
punição. A impunidade estimula a transgressão da lei. A pena,
transformada em vingança, condena a sociedade que a aplica.
Frei Betto é escritor, autor do romance "Entre todos os homens"
(Ática), e outros livros.Os jornais que meu pai levava para casa, ao retornar do trabalho,
consistiam em minha leitura predileta, tão logo passei a dominar, na
década de 1950, o código alfabético. Trazidos de trem, os diários do
Rio só chegavam a Belo Horizonte no início da tarde. Como a TV ainda
não entrara em nossa casa, após o jantar a família reunia-se na sala
de visitas para ler as notícias.
Influenciado pelo americanismo de pós-guerra, acompanhei horrorizado
os passos do casal Rosenberg rumo à cadeira elétrica, acusado de
passar aos russos segredos nucleares. Em setembro de 1949, a União
Soviética explodira sua primeira bomba atômica, detonando nos EUA uma
histeria coletiva, medo de que a próxima caísse sobre a nação que se
considerava imune a um ataque externo.
Leitor de histórias em quadrinhos, aprendi que os EUA estavam
protegidos pelos superpoderes do Capitão América, pela miraculosa
aparição do Super-Homem, pela presteza vigilante da dupla Batman e
Robin. Deus sempre salvava a América.
Julius e Ethel Rosenberg foram apontados como os traidores que
permitiram a Stalin possuir a mais poderosa das armas.
De tanto olhar as fotos em O Globo, gravaram-se em mim os rostos de
Julius, 35 anos, e de Ethel, dois anos mais velha do que ele, na
prisão de Sing Sing, em Nova York. Ele, com óculos de lentes brancas
e um bigode de vassoura que lhe imprimiam aspecto de tabelião
caprichoso. Ela, com os cabelos negros armados sobre o rosto oval, a
boca pequena e o porte robusto. Nunca se provou que eram de fato
espiões, mas o aquecimento da Guerra Fria exigia, para aplacar o
pavor ocidental, um bode expiatório. A pena de morte pareceu-me
apropriada naquele caso. Tratava-se de impedir que a exceção virasse
regra, pondo em risco a segurança do Mundo Livre. Passei dias sob o
impacto da foto do casal amarrado à cadeira elétrica, suas cabeças
cobertas por capacetes repletos de fios, malditos astronautas a
caminho do inferno. Foram executados a 19 de junho de 1953.
O velho buldogue Edgar Hoover, chefe do FBI, felizmente estava a
postos na soleira da porta de nossas casas, defendendo-nos da ameaça
comunista.
Mas não me conformei, pouco depois, com a execução de Caryl Chessman,
também nos EUA. Li suas cartas. Se não me convenci de sua inocência,
não me restava dúvida de que se tratava de um homem recuperado para a
sociedade. Por que matar um criminoso que o cárcere transformara num
intelectual?
Nunca mais aceitei a pena de morte. Um ser humano é um milagre de
Deus e uma obra-prima da natureza. Culpada é a sociedade que faz dele
um monstro e, ao puni-lo, é incapaz de recuperá-lo para o convívio
social. Por isso, fico assustado quando vejo lideranças políticas,
inclusive de esquerda, clamarem por prisão perpétua ou pena de morte.
Não é o peso da sentença que inibe a criminalidade. É a certeza da
punição. A impunidade estimula a transgressão da lei. A pena,
transformada em vingança, condena a sociedade que a aplica.
* Frei Betto é escritor, autor do romance "Entre todos os homens"
(Ática), e outros livros.
https://www.alainet.org/en/node/105613?language=es
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