Da desinformação, dos desejos e da história
- Opinión
A crise do desabastecimento por conta da greve dos caminhoneiros vai passando devagar, deixando marcaias indeléveis. E as redes sociais seguem no interminável frisson de notícias falsas e de fabricação de realidades que vão se incorporando na mente de muita gente que não tem outra fonte de informação. E assim, a televisão – cujo comando está nas mãos de quatro famílias e uma igreja – e o facebook, vão moldando pensamentos e ações. Nessa ciranda, tanto as gentes da direita como as da esquerda vão gestando um caldo grosso de mentiras e desinformação. As redes viraram pântanos onde no mais das vezes só é possível se afogar.
Acordo cedo e espio as notícias, um hábito que tenho bem antes da existência das redes sociais. Vejo que os bloqueios dos caminhoneiros vão sendo levantados e o debate que encontro é de que venceram os empresários. Afinal, o governo acabou isentando impostos das empresas ao propor a redução do preço do diesel. Eles terão um respiro enquanto o restante da população sofrerá com mais um aumento na gasolina, que por sua vez provocará aumento no gás e em outras mercadorias. Ou seja: ganham os caminhoneiros a sua pauta específica e perdem todos os demais mortais. E a culpa é de quem? Dos caminhoneiros reacionários que pararam o Brasil por 10 dias com o apoio dos empresários e das “forças ocultas”. Também se divulga a exaustão que os caminhoneiros todos querem a volta do regime militar e vai se tecendo uma opinião sobre eles que não é das melhores.
Há que pensar sobre isso.
As pessoas se movem por interesses e desejos. O preço do diesel está alto demais, assim como o da gasolina, do gás, da luz. Mas, quem se moveu foram os caminhoneiros, principalmente os autônomos, donos de um, dois ou três caminhões. Tinham uma pauta bem específica: baixar o preço do combustível para poder dar conta de pagar as contas. A eles se somaram, é claro, as transportadoras, afinal, não seriam bobas de ficar de fora de uma movimentação como essa. E espertamente foram negociar com o governo, procurando tirar suas vantagens. Tanto que chegaram a fechar dois acordos, não reconhecidos pela massa que fechava as estradas. Tiveram de aguentar as pontas e esperar até que a maioria que bloqueava as estradas decidisse voltar.
E enquanto os caminhoneiros provocavam uma convulsão nacional os partidos políticos de esquerda, sindicatos, centrais sindicais, movimentos sociais, relutavam em apoiar, entendendo que não era uma greve, mas um locaute, ou seja, algo provocado pelos empresários. Acabou que o tempo revelou ser o movimento as duas coisas ao mesmo tempo, com todas as contradições. Ali estavam os empresários e ali estavam trabalhadores, contapropistas (por conta própria), mas trabalhadores. E por fim, em meio a luta pela queda do preço do diesel, viu-se de tudo. Desde pedidos de volta dos milicos até o Lula Livre. Ou seja: o movimento envolvia todas as frações ideológicas e partidárias, pois, como sempre foi nas greves de qualquer categoria, nem todo mundo que para e luta é de esquerda. Sempre se trava um longo debate quando se inclui pautas mais abrangentes na pauta específica e corporativa. Quem vive o mundo sindical sabe disso muito bem. É sempre uma disputa. No caso da greve dos caminhoneiros, como não havia uma direção específica e a categoria estava espalhada pelo país, as pautas assomaram sem controle.
Creio que se deu demais importância para o conservadorismo. No geral, uma boa conversa, com argumentos claros, convencem aqueles que estão abertos para o diálogo. E não são poucos. Óbvio que há gente conservadora e reacionária por convicção. Mas, muita gente é por não ter informação.
Nessa quarta-feira, em Florianópolis, as centrais chamaram um ato em defesa da Petrobras. Quase nenhuma menção aos caminhoneiros. A impressão que dá é que venceu a ideia de que são todos “pelegos reaças”. Mas, cá no meu cantinho, penso que poderia ser diferente. Uma ação sistemática junto aos piquetes, com conversas e muita, mas muita escutatória, poderia ajudar as lideranças sindicais e partidária a compreender o fenômeno. As coisas estão mudando no mundo da política já faz algum tempo, mas as práticas seguem sendo as de um passado que não cabe mais. Há coisas novas no ar, e não estamos sabendo lidar com isso.
Fiquei pensando sobre as grandes batalhas populares que tivemos no Brasil e em Santa Catarina: Canudos e Contestado. Tanto numa como na outra o mote político abrangente que movia as gentes era a defesa da monarquia. Uma pauta reacionária para a época, visto que assomava a República. Fiquei curiosa para saber como as forças de esquerda se comportaram. Teriam apoiado os camponeses que perdiam suas terras para latifundiários gananciosos? Ou será que se deixaram levar pelo discurso de aquela era uma gente atrasada, que não entendia a importância da República, que estavam atravancando o progresso?
E porque os camponeses maltrapilhos apoiavam a monarquia? Porque ela os havia deixado lá nos seus cantos, com suas terrinhas. E, para eles, o “progresso” da República representava o desalojo, a perda do espaço da vida. Estavam errados? Queriam vida boa e bonita, e enquanto a monarquia não mexia com eles, acreditavam que podiam seguir buscando. Praticavam a consciência ingênua e, pela lógica, só podiam apoiar a monarquia. Óbvio.
Foi assim com os Mapuche – única etnia sul-americana que não foi conquistada pelos espanhóis e portugueses – que só caíram depois que houve a independência. Eles então eram contra as guerras de libertação da colônia porque na monarquia eram capazes de manter sua soberania. Foram vistos como traidores da causa independentista e massacrados pelos vencedores.
Essas são contradições que precisam ser pensadas. A história está aí para ensinar, mas ao que parece, nem mesmo o povo que vive dizendo para os reacionários estudarem história, tem feito o dever de casa. Tampouco estudam história.
A luta de classes é um espaço de contradição. E a consciência de classe não brota só do desejo da gente. Ela exige trabalho e construção. Ela exige estudo, autocrítica, novos estudos. Ela exige a delicadeza da escutatória. Ouvir o outro em profundidade. Compreender o que move os desejos das gentes. Não é coisa fácil. Mas, pode-se lograr.
Temos visto as pautas neofascistas crescerem assustadoramente, muitas vezes impulsionadas por nós mesmos, na louca ilusão de que praticando julgamentos morais sobre as decisões dos outros poderemos mudar as coisas.
Penso que a história nos ajuda a compreender. Revisá-la, escutá-la no mais profundo, pode fazer com que mudemos o rumo das coisas. E, para isso, precisamos de ferramentas como os partidos, os sindicatos e os movimentos. Mas, entendendo que mesmo ali há que haver mudanças para o tempo novo. Vinhos novos exigem odres novos.
É tempo de estudar.
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