Há 54 anos… A mais longeva ditadura de nossa história
O clima de hoje lembra o vivido nas vésperas do golpe de 1964, que dividiu o país e abriu espaço para a violência. Antes da ruptura, a conflagração
- Opinión
Completaram-se, no último 1º de abril, 54 anos da implantação da mais longeva ditadura de nossa história, com todo o seu acervo de tragédias sociais e individuais, e profundo atraso político. Suas consequências ainda se fazem sentir, pois estão na raiz dos dramas de nossos dias, cujo desfecho não podemos divisar: em alguns momentos a ‘luz no fim do túnel’ nos enche de esperanças; noutros sugere um trem na contramão.
Lamentavelmente, os regimes autoritários e as ditaduras não são fenômenos estranhos à República, marcada por insurreições militares e golpes de Estado, manifestações exacerbadas de um autoritarismo larvar cujas fontes remontam à Colônia e ao escravismo de séculos, construtor da ideologia da casa-grande, profundamente presente em nossa vida política e em nossa vida social, e mesmo nas relações interpessoais.
A própria República é obra de um golpe de Estado construído na caserna, e sua consolidação fez-se dependente de outro golpe, sustentado pela espada de Floriano Peixoto. Assim se firmou a República oligárquico-agrária, sem povo e sem eleitores, que sobreviveria até a ‘revolução de 1930’. Antes, porém, viveria o país a insurreição de 1922 (Levante do Forte de Copacabana), e os dois 5 de julho que desembocariam na Coluna Prestes (1924).
E, na sequência de 1930, o levante paulista de 1932, o levante comunista de 1935, a implantação da ditadura do ‘Estado Novo’, o putsch integralista de 1938 e, fechando o ciclo, o golpe que detonou a ditadura e levou Vargas para seu exílio na estância Santos Reis em 1945.
É a história do ‘tenentismo’ que se estende até o regime de 1964, quando seus líderes já eram generais, almirantes e brigadeiros. No seu currículo constam ainda a deposição e suicídio de Vargas em 1954, o golpe e contragolpe de 1955, a crise de 1961 e a implantação casuística do Parlamentarismo, de vida breve. A história da República tem sido a história da preeminência dos militares sobre a política e a vida institucional.
O clima de hoje muito lembra aqueles vividos nas vésperas do golpe de 1964, dividindo o país e abrindo espaço para a violência. É sempre assim. Antes da ruptura propriamente dita, a conflagração. Os conflitos exacerbados em 1963 foram a preparação ideológica da ditadura militar.
Os anos difíceis que se instalam com as jornadas de 2013, de que se apropriou a direita com seu aparato midiático, abrem as rotas que levariam ao golpe de 2016 e à instauração do regime de exceção jurídica que não sabemos se será declarado perempto com as eleições de 2018. O precedente histórico não é animador.
Esse viés autoritário, cultivado pela casa-grande desde a Colônia, é servido à população pelos aparelhos ideológicos do Estado a serviço dos interesses de nossas elites perversas. Nesta faina destaca-se o papel dos meios de comunicação de massa, a quem se pode tributar, hoje, a maior responsabilidade pelo clima de violência que pervade a política.
Em 1964 os militares e seus associados – na política e no ‘mercado’– encerraram o ciclo da Constituição democrática de 1946, enquanto a consolidação do impeachment de 2016 declarou perempto o ciclo iniciado com a ‘Constituição cidadã’ de Ulisses Guimarães, que culminara com a ascensão e queda do lulismo.
Talvez sejam os dias correntes a boa oportunidade para tentarmos antecipar o que podem ser os tempos vindouros. As lições colhidas dos fatos que não se repetem podem orientar estratégias e corrigir táticas, principalmente quando o distanciamento histórico favorece a análise fria.
Naqueles anos hoje distantes, os anos do pré-golpe e do golpe de 1º de abril, poucos viram para além da superfície, e assim muitos ignoraram a conspiração que se desenvolvia nos subterrâneos da caserna em interlocução com a ordem econômica, o Congresso e os meios de comunicação, para logo estampar-se à luz do dia.
De outra parte, uma vez mais, a continuidade e segurança do governo popular se havia deslocado das ruas para os acordos políticos de cúpula. O povo continuava percebido como elemento tático numa estratégia que se resolveria fora das ruas.
Não obstante os elementos fornecidos pela realidade palpável, não eram poucos, então, os que transferiam da mobilização popular para o ‘dispositivo militar do general Assis Brasil’, chefe da Casa Militar de Jango, a defesa do governo, das ‘reformas de base’ e da ascensão das massas.
Nesta linha pontificava o antigo capitão Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro.
No dia 17 de março de 1964, para uma plateia que lotava o auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o antigo Cavaleiro da Esperança, após dissertar sobre ‘a formação popular do Exército brasileiro’, anunciou, com o respaldo de sua biografia, a impossibilidade de um golpe militar no Brasil. E quando este se efetivou, muitos o viram como ‘apenas mais uma quartelada’, como as outras que haviam pontuado a República de 46. Passaria logo.
A história que se segue é conhecida.
Do golpe de 1964 muito se pode afirmar, menos a surpresa, defendido que foi abertamente pela grande imprensa, preparando sua recepção e animando as manifestações dos adversários do governo e de suas teses.
O pretenso combate à corrupção de 2013-2016 era, em 1963-1964, a denúncia de suposta corrupção e de infiltração comunista no governo João Goulart, dando conta das conspirações de toda ordem, militares e civis igualmente conjurados, e, hoje documentalmente comprovada, a arquitetura do Departamento de Estado dos EUA, para quem Goulart, se não era comunista, estava a serviço do comunismo, o que dava no mesmo, segundo Washington. Vivíamos o auge da Guerra Fria e poucos meses nos separavam da crise dos mísseis estocados em Cuba pela União Soviética, incidente que por muito pouco não nos levou ao suicídio nuclear.
A conspiração, aliás, já se iniciara e era visível desde a posse de Goulart, como em suas memórias registra sem peias o Marechal Denis, líder da trinca militar que em agosto de 1961 tentara impedir a posse do vice-presidente constitucional, chamado ao posto pela renúncia do presidente Jânio Quadros.
Hoje também já se sabe que a articulação que culminou com a deposição de Dilma Rousseff já era maquinada nos idos de 2013, a onda preparadora do levante de 2015, com sua inédita carga de violência, deixando para trás os piores momentos de 1963.
Nas duas oportunidades os golpes foram precedidos de grandes mobilizações populares e, ainda em ambos, o leitmotiv unificador da conspiração era, fundamentalmente, a resistência da casa-grande à ascensão político-econômica das grandes massas, naquela altura representada pelo varguismo, em nossos dias pelo lulismo.
Os golpes de 1964 e de 2016 guardam parentesco que precisa ser posto de manifesto. Ambos foram precedidos de mobilizações populares carregadas de atos de violência que expunham a genealogia fascista. Em 1964 importava aos seus verdadeiros formuladores algo muito além da mera deposição de Jango e esse seu caráter profundo só ficou claro aos analistas em 1965, com o Ato Institucional n. 2, baixado pelo presidente que havia jurado a Constituição e prometido defender a democracia.
O significado de 2013 não foi compreendido em seu primeiro momento, e os sismógrafos dos especialistas não perceberam o real significado do impeachment, aquele que se revelaria pelo governo que a ele se segue..
O difícil não está na identificação dos fatos expostos e vividos, mas na arte ou ciência da prospecção social, aquela que revela a realidade ainda em gestação, ou seja, a serpente ainda no ovo.
Em 1964 muitos não lograram antever o significado e os objetivos da ditadura, nem seu largo e profundo mando de 21 anos. Carlos Lacerda, sua principal voz civil, e Juscelino Kubitschek, que votaria no marechal Castello Branco, primeiro ditador, apostaram, olhando para trás, na transitoriedade do novo regime, e logo engrossariam a lista de suas vítimas.
Se não nos foi possível antever a gestação da irrupção popular de 2013, também faltou clareza à esquerda quanto a deposição da presidente Dilma Rousseff, apenas o passo necessário para defenestrar o lulismo, a grande operação de nossos dias.
O ovo da serpente, este é o título da obra-prima de Ingmar Bergman. Quem já assistiu, assista de novo. Quem ainda não o viu, corra para ver. Está no YouTube.
- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
Leia mais em: www.ramaral.org
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