Brasil: o combate à corrupção como instrumento político

Na raiz dos problemas que acompanham a História brasileira está o caráter forâneo de sua classe dominante, cujos interesses e ganhos jamais estiveram vinculados ao desenvolvimento nacional.

27/03/2018
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Foto: Opera Mundi
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 531: La corrupción: Más allá de la moralina 06/03/2018

Uma das características mais distintivas da História brasileira contemporânea é seu caráter recorrente, sugerindo uma sequência de farsas e tragédias, um perverso processo circular que retarda o desenvolvimento em seus diversos patamares, seja econômico, seja político, seja social. Não terá sido por mero acaso – nem muito menos por capricho dos deuses – que tenhamos sido a única monarquia do continente, a última nação a livrar-se da escravidão, e a última a instalar a República. Mesmo assim, uma República sem povo, sem voto, protetorado da preeminência dos militares e da oligarquia rural que, com os olhos voltados para as bolsas de mercadoria de Londres, comandaria o país, brecando seu desenvolvimento, até a revolução de 1930. Coube a esse movimento civil-militar fraturar a aliança entre paulistas e mineiros, produtores de café e gado, defensores da economia agroexportadora, desapartada dos interesses do país e, principalmente, de seu povo.

 

Na raiz dos problemas sociais e estruturais que acompanham a História brasileira desde a Colônia está o caráter forâneo de sua classe dominante, cujos interesses e ganhos jamais estiveram vinculados ao desenvolvimento nacional.

 

Nas primeiras décadas do século passado a população era predominantemente rural, e a economia dependente do rentismo e dos preços internacionais do café, avessas as ‘elites’ econômicas à industrialização, e resistentes àquele desenvolvimento que pudesse ameaçar as estruturas econômico-políticas que asseguravam seu mando. É sobre esse cenário que começa a se configurar o que se poderia chamar de classe-média urbana – funcionários públicos, os pequenos e médios comerciantes, a intelectualidade emergente etc. e os jovens militares. Em 1922, ano da Semana de Arte Moderna, se encontram os sentimentos moralistas da classe-média com a inquietação da jovem oficialidade, simbolizada no Levante do Forte de Copacabana, a primeira de uma série de irrupções militares que se disseminam século afora, até o golpe de 1º de abril de 1964, o vestibular da ditadura militar que só conhecerá seu termo em 1984. Com o Levante, surge o ‘tenentismo’ de que são filhos a Coluna Prestes (1924) e mesmo a revolução de 1930 que se desdobra (1937) no Estado Novo, a ditadura que sobreviria até 1945. 

 

A preeminência dos militares, avaliadores dos governos oligárquicos, se estabelece, institucionalmente, a partir do golpe de Estado de 15 de novembro de 1889, conhecido como Proclamação da República – um acontecimento deles, só deles, isto é, sem povo e sem republicanos, que, derrubando a decadente Monarquia, instaurou a República dos grandes proprietários de terra.

 

A República curatelada, arrimada em um processo eleitoral censitário e corrupto, buscava legitimidade em um alistamento que não abarcava nem as camadas médias da população. Em 1894, na primeira eleição direta para presidente da República, o candidato vitorioso, Prudente de Morais, elegeu-se com cerca de 270 mil votos, o que representava menos de 2% da população brasileira.

 

Essa democracia sem povo e sem voto sobreviverá até 1930, ano da revolução varguista que se transformará em ditadura em 1937 e se estenderá até 1945, quando Getúlio Vargas, o ditador, é deposto por um golpe militar.

 

Essa pequena introdução tem o propósito de pôr de manifesto o encontro do combate despolitizado à corrupção com os golpes de Estado, de base militar ou não, como o de 2016. Um dos temas centrais do levante de 1922 era a denúncia da corrupção eleitoral e o pleito por um sistema eleitoral ‘justo’, ou seja, sem fraude. Estabelece-se entre os militares, majoritariamente, a crença de que os males do país residiam na corrupção (um crime civil), tema que logo foi absorvido pelas correntes políticas de direita, que dominariam o debate político, e passariam a frequentar os quartéis militares. Assim, o combate à corrupção se transforma em instrumento político de apelo à ruptura constitucional, invocada como necessária ao combate à corrupção, quando seu objetivo tem sido o de impedir a continuidade de governos, chamados de ‘populistas’, por ensejarem a emergência das massas. 

 

O azimute que unifica as forças conservadoras (auto-denominadas como ‘liberais’) é a ‘moralização dos costumes políticos’ (cortina de fumaça para o golpismo) que, a partir principalmente dos anos 50 do século passado, passa a contar com a ação da grande mídia. Seu papel, de sempre, mas que se acentua principalmente após a redemocratização de 1946 (primeiras eleições após a queda da ditadura do Estado Novo é a construção do discurso ideológico unificador do pensamento conservador-reacionário, fundado no combate à corrupção, na manipulação dos conceitos de ética, liberdade e democracia. Cumpre-lhe: 1) criar as condições subjetivas para o golpe (de que a direita lança mão sempre que se vê ameaçada em seus interesses) e 2) legitimá-lo, mediante a construção autônoma da narrativa. Em 2016 (contra o lulismo), como em 1954 (contra Vargas, o homem e o que ele representava), como contra Juscelino Kubitscheck nos idos do desenvolvimentismo (1956-1961), como na preparação de 1964, contra o homem João Goulart e o que ele representava como promessa de desenvolvimento nacional autônomo, distribuição de renda e de emergência das massas, o eterno fantasma a povoar os pesadelos das classes dominantes.

 

A partir do governo constitucional e democrático de Vargas (1951-1954) e até a derrocada do lulismo (2003-2016), registra-se o avanço do pensamento de centro-esquerda, caracterizado pela emergência das massas associada a um projeto de desenvolvimento nacional autônomo. Teses inaceitáveis pela direita brasileira. Seguem-se os golpes e a mesma justificativa o combate à corrupção.

 

A vitoriosa campanha contra Vargas, em 1954, centrava-se na denúncia de um ‘mar de lama’ que correria nos inexistentes ‘porões’ do Palácio do Catete, sede do governo. O que na verdade se combatia era o projeto de desenvolvimento nacional autônomo e proteção das classes trabalhadoras.

 

O governo Juscelino foi atacado, como corrupto, desde o primeiro dia, e voltou a ser alvo de inquéritos na ditadura. Nada, como no caso de Vargas e de João Goulart, seria comprovado, mas o presidente teve de enfrentar dois levantes militares e cerca de 10 pedidos de impeachment. Seu sucessor, o candidato da direita Jânio Quadros, o efêmero, tinha como símbolo de campanha uma vassoura e como mote ‘acabar com a roubalheira’.

 

João Goulart (1961-1964) já era combatido desde seu tempo de Ministro do Trabalho (1953) e desde sempre acusado de ‘populista’ e corrupto. Em seu governo avançaram os esforços visando à emergência das massas e a efetivação de uma política externa independente projetos fatais na contingência brasileira. A longa campanha visando à sua deposição (1964) acusava seu governo de subversivo e corrupto.

 

A História não se repete, senão com farsa ou tragédia, mas ela é pelo menos recorrente. Maquiavel dizia que os homens gostam de refazer caminhos já percorridos.

 

A denúncia de corrupção foi a arma da direita brasileira para justificar a deposição de Dilma Rousseff, em 2016, mas desta feita seus objetivos são mais profundas.  Com a cantilena de sempre, trata-se de destruir o símbolo da emergência das massas, o ex-presidente Luiz Inácio da Silva, destruí-lo infamando-o, como corrupto, a imagem que dele tenta grafar o conluio do sistema empresarial em aliança com a mídia e o poder Judiciário. 

 

No caso da deposição de Dilma Rousseff e da tentativa, em andamento, de destruir a imagem do ex-presidente Lula e do que ele representa, há um fato inusitado: foram as forças da corrupção, simbolizadas na figura de Michel Temer e da súcia que tomou de assalto o poder que, em nome do combate à corrupção, comandaram o golpe e agora manobram a condenação moral de Lula.

 

Roberto Amaral, escritor, cientista político, ministro da Ciência e Tecnologia no primeiro governo Lula.

 

 

 

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