Precisamos ingressar na idade da razão

22/03/2018
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Aproveitemos o sacrifício involuntário e inesperado de Marielle para refletirmos sobre a tragédia que é a política fluminense

 

O Brasil desmoraliza o impossível: a tragédia nacional se agrava dia a dia, abarcando todos os setores da vida nacional, esgarçando o tecido social, trabalhado pela violência indiscriminada e pela intolerância estimulada, em níveis jamais conhecidos em nossa História.

 

É a mais grave crise da vida republicana que, no passado, por diversas vezes, foi espaço de rupturas constitucionais, violação de direitos e retrocessos políticos, sempre em prejuízo dos trabalhadores e dos mais pobres.

 

Essa crise de nossos dias, cuja profundidade, violência e gravidade a cortina de um legalismo autoritário tenta escamotear, deita sua peçonha sobre todos os poderes constitucionais, tornados ilegítimos e inconfiáveis, abrindo caminho para a crise institucional já visível à luz do dia.

 

É este um balanço do regime derivado do golpe de Estado de 2016, e ele exige das forças populares vigilância e ação (organização e mobilização) em defesa da ordem democrática. Nada obstante suas limitações de hoje, a aliança de forças que tomou de assalto o poder investe na fragilização do processo democrático e não titubeará em decepar o processo eleitoral se a oportunidade se oferecer, se a correlação de forças revelar-se favorável

 

A classe dominante brasileira é despida de escrúpulos, e sem pruridos morais pode transitar do legalismo mais estrito ao golpismo mais deslavado. Não nos esqueçamos de que o golpe de 1º de abril de 1964 tinha como uma de suas bandeiras mais caras, aquela que mais falava aos corações dos liberais, a defesa da Constituição e da democracia – as primeiras vítimas da ordem ditatorial-militar.

 

Jamais tivemos um presidente de República tão repudiado pela opinião pública. Sua ‘gestão’ é considerada  regular, ruim e péssima por 89% da população (Estadão, 19/03/2018). Jamais tivemos um governo tão inepto, tão antinacional, tão anti-povo.

 

A alma, o espírito, o corpo, a desqualificação moral de nosso Legislativo foram eviscerados pelo espetáculo grotesco daquela sessão de 17 de abril de 2016. Nada de sério ou de honroso nos é dado esperar dessa Casa de negócios, por mais que lá resista um minoria estatisticamente irrelevante em face da maioria ilegítima e corrupta, desvinculada de pudores ou comprometimento cívico.

 

Mas o Poder Judiciário, sócio do golpe de 2016, como fôra do golpe de 1964, como fôra do golpe parlamentar de 1961, sócio do autoritarismo e expressão ativa dos interesses da casa-grande, tem superado todos os limites da auto-degradação.

 

Quando seus príncipes e suas princesas, habitantes do topo da pirâmide social, faziam greve (juízes fazendo greve!) por penduricalhos salariais como o ilegal e imoral ‘auxílio-moradia’, no Rio de Janeiro,  sob intervenção federal das Forças Armadas, reduzidas ao papel de polícia, mais um crime do atual governo federal, eram executados a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Pedro Gomes, no centro da capital fluminense, nas barbas dos militares.

 

É sintoma do Judiciário que temos, de sua qualificação moral e ética, de sua furiosa noção de classe, de seu reacionarismo e irracionalismo, de sua sesquipedal incultura, a declaração expelida sobre o crime pela desembargadora Marília de Castro Neves Vieira, que já ofendera Zumbi dos Palmares e o deputado Jean Wyllys, que desejaria ver fuzilado. Gostaríamos de crer na sua excepcionalidade, mas tememos estar diante de uma visão-paradigma.

 

O governo federal humilhou o Rio de Janeiro com a intervenção descabida e inócua (como advertia o resultado pífio de suas antecessoras), mas sua principal vítima foram as Forças Armadas que erraram ao aceitarem o papel de joguete mercadológico-eleitoral de um presidente acossado pela impopularidade e pelos inquéritos que apuram sua participação em conhecidas falcatruas, muitas das quais remontam ao seu reinado no Porto de Santos.

 

A execução que abateu tão cedo a vida de uma notável líder social (que jamais será suficientemente pranteada) consistiu, muito provavelmente, em tresloucada provocação da banda podre das polícias-milícias contra a intervenção que, por inexperiência de seu comando, anunciou o propósito de saneá-las, quando deveria fazê-lo sem aviso prévio.

 

Seja qual tenha sido a motivação, uma bofetada na dignidade dos cidadãos, nada diminui a torpeza e iniquidade do crime político, cujos mentores e mandantes, tanto quanto ou mesmo mais que seus executantes, precisam ser identificados, se a casa-grande não deseja institucionalizar a lei da selva que já impera – governando como se um Estado autônomo fosse – nas periferias pobres de nosso país.

 

O crime põe em xeque o caráter da intervenção e nos adverte para o calamitoso desastre que poderá ser o saldo da ação das Forças Armadas (doloroso também para elas), em missão para a qual não se destinam e muito menos estão qualificadas. Por isso, sem forçosa relação de causalidade, o crime e a intervenção estão de mãos dadas.

 

Celso Amorim, ex-Ministro da Defesa, aponta para o âmago da tragédia: “(…) a filosofia que inspirou a intervenção foi o que induziu ao assassinato de Marielle, seja por priorizar a repressão violenta nas comunidades pobres, seja por levar setores policiais ou das milícias ou do tráfico a colocar a autoridade interventora frente a um desafio aberto.

 

Como no episódio do Riocentro, já lembrado por Tereza Cruvinel, entre outros comentaristas, a responsabilidade pelo crime recai sobre aqueles que escolheram a via da violência como meio de, supostamente, garantir a segurança da população” (“Carta aberta às forças progressistas do Estado do Rio de Janeiro”).

 

Além do mais, como é óbvio, como é sabido por todo o mundo, inclusive pelos serviços de inteligência das Forças, o monitor da violência não está nas favelas cariocas ou paulistas, ou cearenses, nem será combatido com a invasão civil ou militar, morro acima, atemorizando ainda mais seus moradores, trabalhadores já acossados por policiais, milicianos e bandidos. A violência que explode nos morros e já desce para o asfalto tem origem no narcotráfico, do qual os facínoras de pés descalços são meros varejistas.

 

Ou há alguém neste mundo, além de Pedro Bó, que acredite na falácia segundo a qual é essa gente quem negocia com o tráfico internacional, que fornece as armas e a droga que aqui faz escala na sua viagem para os EUA e a Europa? Cumpram com exação as Forças Armadas e a silente Polícia Federal (nesse imbróglio, o que é que ela tem a dizer?) o seu papel de vigilância de nossas fronteiras, e não mais ingressarão em nosso território nem as armas nem a droga. Feche a Marinha de Guerra a baía de Guanabara, a grande porta de entrada do contrabando, e as fontes dos varejistas secarão.

 

E tenhamos, afinal, a coragem de rever uma legislação retrógrada, caduca, que fomenta o círculo vicioso repressão-contrabando-repressão que enriquece contrabandistas e policiais desonestos, espalhando a corrupção até níveis inusitados do poder público e da política  – como nos lembra o papel da Lei Seca nos EUA (1920-1933), alimentando a máfia, com as consequências que a literatura e o cinema notabilizaram.

 

É sempre oportuno lembrar: a violência nos morros, massacrando sua gente, aquela que poderíamos chamar de endógena, tem origem nas miseráveis condições de vida de suas populações, de que se aproveitam o tráfico e as milícias para, através do medo, dominar territórios, impor a barbárie no lugar da lei, beneficiados pelo ativo comprometimento de chefias políticas e dos ‘arranjos’ eleitorais.

 

Para esse fim, ações pontuais, cosméticas, que só valem para fornecer imagem para as televisões, de nada servem. Serve a intervenção maciça de recursos públicos,  intervindo nas periferias como nos bairros da zona sul do Rio, com saneamento básico, urbanização, escola e educação; mediante uma política de desenvolvimento que combata o desemprego e a miséria, a matéria-prima que alimenta o tráfico, a violência e o crime.

 

De igual modo é fundamental um policiamento compatível com a cidadania, que privilegie a inteligência em detrimento da força bruta, evitando lançar combustível em fogueira e preservando a vida dos moradores e dos próprios policiais, que não podem continuar condicionados a agir como bestas-feras, servindo de capitães-do-mato e buchas de canhão.

 

O golpe teve sucesso e, pior, se mantém ágil na sua faina por destruir o que de mais caro possui uma nação, a esperança de seu povo.

 

É da essência do projeto político a intencionalidade, a vontade, a busca de um determinado fim, a seleção de meios. Isso nos diz que planejamento e ação políticas não casam com a expectativa do acaso.

 

Por exemplo: condicionar o futuro de uma causa ao resultado de um julgamento judiciário, ou seja, ao acaso de uma decisão favorável, é renunciar ao papel de sujeito no processo histórico. Mas se o aleatório é uma condição possível, cabe ao estrategista trabalhar com o não-planejado e usar sua energia, sua força – e até as emoções que de acordo com suas características pode desencadear – em benefício do projeto político, que, em seu proveito, tudo deve atrair.

 

Aproveitemos o sacrifício involuntário e inesperado de Marielle, e a profunda dor que essa perda nos causa, para refletirmos sobre essa outra tragédia que é a política fluminense, a chamar as forças populares e de esquerda para a unidade.

 

Precisamos, hoje mais que nunca, ingressar na idade da razão.

 

Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

 

 

 

 

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