Na Venezuela, guerra econômica por trás da falta de medicamentos

19/12/2017
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Mais prestigiado jornal norte-americano, o New York Times acaba de publicar uma longa reportagem sobre o drama da saúde e da desnutrição na Venezuela (18/1/20170). Ilustrada por fotos dramáticas – em particular de crianças em pele e osso – e histórias de famílias devastadas, a reportagem constitui um exemplo de jornalismo parcial e fora de foco.

 

A análise mais simplória da situação venezuelana ensina que não é possível compreender o que acontece no país -- seja com remédios, alimentos e outros bens de primeira necessidade -- sem reconhecer um ambiente de guerra econômica destinada a desestabilizar o chavismo.

 

Num país onde uma oposição apoiada de modo escancarado pelos países mais influentes do Continente -- os Estados Unidos e o Brasil de Michel Temer -- procura retornar ao poder de qualquer maneira, inclusive através de atos de terrorismo, provocação e sabotagem, vive-se aquela situação peculiar onde as disputas políticas alimentam a crise econômica, aumentam as dificuldades sociais e radicalizam impasses históricos.

 

Embora o presidente Nicolas Maduro tenha conseguido uma terceira vitória eleitoral em apenas seis meses, desnudando a falta de base popular de adversários, é certo que a crise está longe de resolvida. Nesse ambiente de confronto permanente, o sistema de saúde venezuelano tornou-se no centro do alvo da guerra por algumas razões previsíveis. Para começar, representa, historicamente, uma das glórias do chavismo, que na década passada fez uma pequena revolução com o ingresso massivo de médicos cubanos e a instalação de postos de atendimento pelo país inteiro -- a meta do programa era garantir que todo cidadão tivesse um posto de saúde a 100 metros de sua casa, no máximo.

 

Sem uma indústria local para garantir o atendimento e as necessidades da população, a Venezuela sempre se utilizou de remédios e medicamentos importados -- em dólar. Em situação normal, a indústria recebia dólares – sempre em valores subsidiados – para fechar as importações, abastecendo farmácias, postos de saúde e hospitais. Em situação de guerra econômica, os dólares que deveriam comprar remédios têm outra função, muito mais compensadora para as empresas -- e nociva para o cidadão comum. São desviados para alimentar a especulação e o enorme mercado paralelo da moeda norte-americana, reduzindo artificialmente a oferta de remédios e engordando os lucros de importadores de forma espetacular. Num país onde a economia gira em torno da venda de petróleo, este é o dado essencial, que explica a alta inflacionária -- os alimentos também são importados --, a falta de medicamentos e assim por diante.

 

Em minha passagem recente pela Venezuela, há duas semanas, vi com meus próprios olhos: no primeiro dia, um dólar era comprado a 70 000 bolívares no saguão dos hotéis; no segundo, a 120 000; no terceiro, o cambio estava suspenso porque, se dizia, o Banco Central Venezuelano ficara sem papel-moeda para imprimir dinheiro. Nesse dia o cidadão comum fazia filas de dobrar esquina para retirar bolívares de caixas eletrônicos. 

 

As explicações mais convincentes para esta situação, que está na origem do sofrimento de tantas famílias venezuelanas, estão no livro "La Mano Visible del Mercado -- Guerra Econômica en Venezuela", da professora Pasqualina Curcio Curcio, da Universidade Simon Bolívar. (Edições MinCI, 2017). Na página 95, a professora se debruça sobre os últimos cincos anos da vida cotidiana do país, quando a guerra econômica tornou-se aberta, para assinalar: "Não há dúvida de que desde 2012 se tornou cada vez mais difícil ao povo venezuelano adquirir medicamentos, especialmente aqueles que estão disponíveis nas farmácias".

 

No levantamento, a professora estuda o comportamento de dez corporações transnacionais que embolsam 50% das divisas destinadas às importações indústria farmacêutica de 2004 até hoje. Ali estão os gigantes mundiais, presentes no mundo inteiro. Chegaram a consumir US$ 1 bilhão e até mais cada um, em dólares preferenciais, num período de dez anos. Registrando momentos em que havia uma escassez de 40% (2013) e até 60% ( 2014) em determinados medicamentos, a professora registra  a contradição básica. Não é que o caixa do governo estivesse vazio em função, por exemplo, da queda no preço do barril do petróleo, responsável por 80 das divisas do país. Nada disso, diz ela. "Esperávamos evidenciar uma queda abruta na destinação de divisas ou, pelo menos, de igual proporção ao nível de escassez. O observado foi o contrário: tanto a destinação de divisas como os registros de importação aumentaram em 2012, 2013 e 2014".

 

Computados empresa por empresa, os dados são claros. Enquanto um único laboratório teve queda nos contratos de câmbio, da ordem de 8% no período, os demais viveram elevações significativas, de 13%, 60% e até 130%, no caso mais elevado. Chegando a 2015, quando a escassez chegou a 70%, a professora confirma o mesmo quadro: "nenhuma das dez grandes corporações registrou perdas operacionais, diminuição de lucros ou queda nas vendas em 2015". No ambiente de escassez gigantesca de dois anos atrás, a professora aponta para incoerência entre a contabilidade e vida real: seria "esperar que isso se refletisse nos relatórios financeiros das empresas, tanto numa diminuição nas vendas como nos lucros corporativos".

 

A mesma contabilidade suspeita é debatida no capítulo que se refere a empresas que importam produtos de higiene pessoal e da vida doméstica, como sabonetes, desodorantes, pasta de dentes e até papel higiênico. Com base no relatório anual das quatro grandes empresas do setor -- todas estrangeiras -- a professora escreve que "nenhuma registrou perdas operacionais nem diminuição de suas vendas em Venezuela durante os últimos anos, incluindo 2015". "Quando analisamos a quantidade de divisas que o Governo nacional destinou as corporações nacionais, observamos que ela se incrementou", diz a professora (página 108).

 

A Venezuela vive hoje uma situação grave mas não inédita, no qual os adversários internos e externos de Nicolas Maduro procuram produzir atos de sabotagem destinados a enfraquecer um governo que não conseguiram vencer nas urnas. Embora seja um dado da paisagem que acompanhou o chavismo desde o início, a guerra econômica se intensificou após 2013, quando a oposição foi vencida por Nicolas Maduro, naquele que foi seu mais esperançoso esforço de retornar ao Palácio Miraflores pelas urnas.

 

Em versões semelhantes, o mesmo esquema foi aplicado a Cuba, no início da década de 1960, e no Chile sob o governo de Salvador Allende, derrubado pelo golpe militar de 1973. Em 1964, no Brasil, o golpe que derrubou João Goulart foi antecedido, também, por medidas de sabotagem e sufoco econômico, coordenadas pelo embaixador Lincoln Gordon.

 

Nos dias finais de minha visita a Venezuela, na cobertura de eleições municipais que produziram uma terceira vitória política do governo Maduro em 2017, foi possível confirmar que  conquistas históricas do chavismo explicam a resistência da população. Mas a paciência de homens e mulheres que convivem com uma situação de sacrifícios prolongados ("mas sem passar fome", repetem com orgulho) começa a dar sinais de esgotamento.

 

Parece claro, por um lado, que ações de sabotagem de vulto, capazes de questionar o conjunto de um setor da economia, seriam inviáveis sem a conivência e mesmo cumplicidade de uma fatia de autoridades encarregadas de zelar pelo interesse público. Por outro lado, é razoável imaginar que, legitimado por três eleições de caráter plebiscitário, o governo Maduro possa avançar medidas em direção ao controle do comércio exterior e do câmbio, a encruzilhada onde a riqueza do país se transforma em mercadoria de guerra.

 

“É hora de aplicar a mão dura contra especuladores, que prejudicam milhões de famílias e permanecem impunes,” disse ao 247 a diretora de escola Ana Cedeño, responsável política do PSUV, em Caríbia, nos arredores de Caracas.

 

- Paulo Moreira Leite, jornalista e escritor, é diretor do 247 em Brasília

 

19 de Dezembro de 2017
https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/332951/Na-Venezuela-guerra-econ%C3%B4mica-por-tr%C3%A1s-da-falta-de-medicamentos.htm

 

https://www.alainet.org/de/node/189958?language=en
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