A banalidade da farsa: um debate sobre o totalitarismo midiático

23/10/2017
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Foto: Jornal Nacional das Organizações Globo (reprodução da TV Globo).
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Em 1997 o norte-americano Barry Levinson, o mesmo do maravilhoso “Rain Man”, dirigiu o polêmico filme “Wag The Dog”, literalmente “Balançar o Cachorro”, o qual foi traduzido para o Brasil como “Mera Coincidência”. Estrelado pela dupla Dustin Hoffman e Robert De Niro, o eixo central do roteiro é a construção de um artifício para libertar o Presidente dos Estados Unidos de um escândalo sexual que assolava a companha às vésperas do pleito eleitoral.

Para enfrentar o problema Conrad “Connie” Bean (De Niro) entra em contato com o produtor de cinema Stanley Motss (Hoffman), para criar uma solução para a crise. Como estratégia, ambos produzem uma farsesca guerra contra a Albânia, país mediterrâneo que, na época, estava em pobreza extrema e incapaz de enfrentar o poderio militar e de comunicação estadunidense. Articulados com todos os grandes meios de comunicação, utilizando-se de modernos efeitos especiais, ambos criam uma campanha de massa em defesa do patriotismo nacional, com personagens heroicos (atores desconhecidos), símbolos e até camisetas contra a possível “ameaça” do pequeno país europeu aos Estados Unidos. O resultado foi que uma mobilização geral da população do país e da imprensa em razão do “perigo” de uma guerra contra um “inimigo tão poderoso”. Afinal, a Albânia, que no mundo real enfrentava uma crise sem precedentes, poderia acabar com o “sonho americano”!

Entretanto, aquilo que parece apenas mais fábula de hollywoodiana pode ser muito mais real do que pensamos. Todos os dias somos literalmente atropelados por uma enxurrada de notícias e manchetes emitidas por jornais, revistas, televisão, rádio, internet, redes sociais, dentro outros mecanismos de comunicação, cada vez mais rápidas e de fácil acesso. Quem analisar o conteúdo das matérias vai observar, sem muito esforço, que a maioria possui o mesmo conteúdo ou reproduz informações de outras semelhantes. A aparente coerência entre as informações repassadas pelos grandes grupos de comunicação faz com que os consumidores de notícias vejam aquela realidade como única. Contudo, um breve esforço crítico obriga o cidadão mais atento a questionar: o que é realmente verdade? Quantas “guerras contra a Albânia” nos são repassadas cotidianamente?

A ideia de hiper-realidade foi desenvolvida por pesquisadores pós-modernos para refletir o momento em que passamos, onde muitas das informações coletadas pelos indivíduos não são mais obtidas no mundo concreto, mas em um universo artificialmente construído e socialmente vivenciado. Tal qual as personagens da obra dirigida por Levinson, muitos roteiros sem base concreta ou manipulados nos são repassados como verdade. As manchetes não são “informações”, mas “versões de informações” que atendem ao interesse deste ou daquele grupo econômico.

Aliás, seria necessário expandir este estudo para um campo mais amplo, abrangendo a relação pouco saudável entre os grandes grupos de comunicação e o mercado financeiro. Contudo, por hora, ficamos apenas com a relação de aproximação entre notícia e propaganda, algo que já havia sido identificado pela Escola de Frankfurt, especialmente por Habermas, Fromm e Marcuse, ainda nas décadas de 1950 e 1960. Notícia e propaganda, cada vez mais, são a mesma coisa, especialmente em termos de grandes cenários, como nacional e internacional. Inimigos irreais, heróis e acontecimentos são criados e apresentados artificialmente. Vocês já notaram o esforço dos telejornais para identificar quem são os heróis e os vilões?

O poderio da relação entre imprensa e propaganda já havia sido testado durante o governo nazista, sob o comando de Joseph Goebbels. A mesma estratégia é adotada diariamente pelos meios de comunicação sem que cidadãos e cidadãs percebam. Não se trata da mera associação da cerveja à juventude e a felicidade, mas a facilidade como figuras como o juiz paranaense Sérgio Moro são transformados, da noite para o dia, em pessoas cultuadas, apesar dos seus posicionamentos jurídicos absolutamente questionáveis.

A agenda política dos meios de comunicação não fica apenas nos noticiários e nas propagandas. Muitas vezes é embutida em programas de televisão, de rádio, novelas, dentre outros, transformando figuras inexpressivas em formadores de opinião. O uso de símbolos, estigmas e a construção de modelos também é uma forma de impor regras e comportamentos como, por exemplo, “o bom cidadão é aquele que veste roupas verde e amarela e não questiona os donos do poder”, ou “a defesa do constante abuso de poder por autoridades civis e a institucionalização de um estado-policial para combater a policial, como se este fosse o único caminho”.

Vocês já notaram quantas vezes os cidadãos e cidadãs pensam na possibilidade de abdicar de direitos fundamentais para enfrentar problemas como a violência criminal e a corrupção? Na verdade, enfrentamos aquilo que Hannah Arendt classifica como totalitarismo, um “instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes”.

Mas se o nazismo utilizava o terror e o extermínio como instrumentos de poder, por que classificamos a ação oligopolista da mídia como totalitária? A resposta de Arendt a esta pergunta consiste na invasão da vida privada, na exclusão da diferença e o combate ao ser espontâneo. Os meios de comunicação de massa estabelecem padrões, hábitos e comportamentos que devem ser observados. A estigmatização da diferença social, étnica e política são modos comuns de imposição totalitária. A associação da cultura muçulmana ao terrorismo e da esquerda à corrupção pela impressa são exemplos disso, muito embora, na prática, ocorra exatamente o contrário. A religião muçulmana é fundada na defesa da paz e os governos de esquerda possuem resultados muito mais efetivos no combate à corrupção e no fomento à transparência do que as administrações de outros matizes ideológicos.

Outro caso clássico é o da demonização do serviço público em favor do capital privado, sob a lógica de que “privatizar é bom”. No entanto, uma análise apurada dos dados contradita tal discurso, quando observamos que as universidades federais públicas possuem resultados muito melhores do que as privadas e que o Sistema Único de Saúde apresenta serviços de excelência, como as Unidades de Pronto Atendimento – UPAS, enquanto os planos de saúde não conseguem dar atendimento eficiente e se perdem na lógica da contenção dos gastos com exames, o recurso discursivo é derrubado. Aliás, quem estuda os sistemas de saúde sabe que a alta complexidade é mantida predominantemente com recursos públicos e não pelo sistema privado. Ou seja, quando há serviços de saúde mais complexos, o mercado privado é dependente do poder público.

Uma grande característica dos modelos totalitários é a sua apresentação como caminho único e, para tanto, o outro se torna inimigo. É exatamente neste momento que surge a violência em seu estado puro, especialmente no formato simbólico. Aliás, se a hiper-realidade é um universo de símbolos, de imagens, de informações distorcidas, também temos a violência com o uso de símbolos que visam desqualificar e excluir os oponentes. Há na lógica maniqueísta dos meios de comunicação de massa um uso contínuo da violência simbólica. A imagem, a vida e a honra de pessoas, no mundo real, são destruídas na construção de manchetes, muitas vezes de forma irrecuperável, mesmo que uma condenação penal, por exemplo, tenha sido derivada meramente de uma “interpretação literária”. A espetacularização das investigações policiais e das ações judiciais são a mais clara demonstração do elevado grau de maniqueísmo noticioso, com um agravante: “todo mundo é supostamente investigado pelos meios de comunicação de massa, mas ninguém investiga o processo de produção noticioso”. A falta de limites éticos em opiniões e manchetes é um dos grandes mecanismos para o fortalecimento do totalitarismo midiático.

Por fim, resta lembrar que desde o final da segunda guerra temos mundial uma centralização das informações nas grandes agências de notícias, Reuters, UPI, AFP e DPA e não muito mais do que isto. Todas com sede nos Estados Unidos ou na União Europeia. No Brasil, temos a Agência Brasil, única pública, a O Globo, O Estado e a ABN. Tais grupos repassam matérias e fotos para os outros meios de comunicação, e é exatamente por isto que observamos aparente coerência nas manchetes. Trata-se de uma unificação de poder gigantesca e de um oligopólio de comunicação sem precedentes. Resta muito pouco espaço para a crítica e para a diferença, o que resulta na mais poderosa forma de totalitarismo conhecida pela humanidade.

Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2017/10/21/a-banalidad...
 

https://www.alainet.org/de/node/188803
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