Nem o Barão do Rio Branco salvaria a política externa do golpe

10/03/2017
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O golpe substituiu a exitosa política externa “altiva e ativa” por uma política externa vassala e vazia, ou submissa e omissa, como já definiram alguns. Vassala porque submissa a interesses externos, e vazia porque desprovida de estratégia própria e viável para a inserção do país no cenário mundial.

 

Essa nova política, implantada por Serra e que terá continuidade com Aloysio Nunes, visa contribuir à restauração do falido projeto neoliberal no Brasil. A ideia central é colocar ênfase na “agenda econômica” da diplomacia, de modo a atrair investimentos externos e inserir o país “nas cadeias internacionais de valor”, mediante a adesão acrítica a acordos de livre comércio com países mais desenvolvidos, especialmente com EUA e aliados.

 

Trata-se, na realidade, de mero aggiornamento da fracassada política externa dos tristes e descalços tempos de FHC, que, ao buscar a chamada “autonomia pela integração”, conseguiu apenas mais dependência, menos integração e protagonismo reduzido. Apostando tudo nas relações bilaterais com os EUA e na integração à modernidade globalizante da pax americanna, nos tornamos um país menor, de escasso prestígio mundial, além de economicamente dependente e débil.

 

Foi nessa época que nos desarmamos, atendendo às pressões da “comunidade internacional” (EUA), abrimos nossa economia sem maiores critérios e nos submetemos aos desígnios da única superpotência do planeta. Não chegamos ao ponto da Argentina, que conseguiu a proeza de ter “relaciones carnales” com os EUA, mas chegamos perto. Nossa soberania foi bastante bolinada.

 

No cômputo geral, todo esse disciplinado investimento vira-lata em dependência, combinado com a âncora cambial, resultou em déficit comercial total de US$ 8,6 bilhões em 8 anos, reservas líquidas de minguados US$ 16 bilhões, dívida externa líquida de 37% do PIB, uma participação no comércio mundial de mero 0,9 %, três idas ao FMI para pedir alívio financeiro e um baixo protagonismo internacional.

 

Em compensação, nos tempos da política externa “altiva e ativa”, (“ideológica, bolivariana e isolacionista”, segundo os arautos do neoliberalismo tardio), acumulamos um superávit comercial de US$ 308 bilhões (até 2014) e reservas líquidas de US$ 375 bilhões, eliminamos nossa dívida externa líquida, nos tornamos credores internacionais, inclusive do FMI, aumentamos nossa participação no comércio mundial para 1,46% e obtivemos protagonismo mundial inédito, com Lula se convertendo numa liderança internacional cortejada e respeitada. Nunca uma política externa “ideológica e isolacionista” rendeu tanto, em termos concretos e pragmáticos.

 

Agora, no entanto, tenta-se o retorno à mesma política externa fracassada. Há, porém, uma grande diferença. Na época de FHC, o mundo vivia o auge do paradigma neoliberal. O Consenso de Washington dominava corações e mentes. A queda do Muro de Berlin era uma memória muito recente. A Rodada do Uruguai do GATT e a criação da OMC tinham acabado de ocorrer. As autoridades europeias e os representantes do Departamento de Estado norte-americano estavam empenhadíssimos na abertura comercial e financeira em todo o mundo, que era socada goela abaixo dos países em desenvolvimento. Os EUA exerciam liderança praticamente inconteste na ordem mundial marcada pelo unilateralismo belicista. Ademais, a economia e o comércio internacional iam de vento em popa, com pequenos sobressaltos causados por crises regionais e locais autocontidas.

 

Porém, hoje o mundo vive a pior crise econômica desde a Grande Depressão de 1929. Crise profunda, sistêmica e duradoura causada justamente pela desregulamentação neoliberal, que aprofundou desigualdades e fez colapsar as economias reais. O Consenso de Washington virou uma piada anacrônica. A Queda do Muro de Berlin se tornou uma fotografia em tom sépia que adorna paredes carcomidas. A outrora pujante OMC é hoje uma instituição de utilidade duvidosa. A liderança antes inconteste dos EUA atualmente convive com a ascensão meteórica do BRICS e com fraturas entre seus aliados históricos.

 

Assim, a ordem mundial é hoje muito diferente e muito mais complexa que a ordem que prevaleceu na década de 1990, quando os ideólogos do “fim da História” proliferaram como fungos. Além disso, está claro que o novo governo norte-americano e alguns governos europeus não têm mais o menor interesse em promover livre comércio ou desregulamentação de regras em suas relações com países em desenvolvimento.

 

Não que Trump vá desfazer a globalização criada justamente pelos interesses de grandes empresas norte-americanas. Mas é evidente que não há mais espaço para novas negociações e avanços, numa conjuntura na qual alguns países importantes pretendem adotar uma postura francamente protecionista.

 

Dessa forma, a tragédia de ontem se repete hoje como farsa.

 

O desempenho patético de Serra à frente do Itamaraty tem menos a ver com seu perfil pessoal inadequado para o cargo do que com o caráter profundamente equivocado e inoportuno desse “requentamento” da política externa fracassada da década de 1990.

 

Embora Serra fosse, por seu perfil, o “homem errado no lugar errado”, o seu fracasso está mais vinculado ao fato de que sua política externa é um caso típico de ideias fora de lugar e do tempo.

 

Ao longo de sua temerária gestão, Serra só conseguiu expulsar ilegalmente a Venezuela do Mercosul, brigar com o pequenino Uruguai e distribuir coices contra a Unasul, o Mercosul, a Comissão de Direitos Humanos da OEA e países “bolivarianos”. Dedicado à defesa indefensável do golpe e empenhado na venda do patrimônio nacional, Serra fez do Brasil um país pequeno e menor.

 

Saiu não tanto por problemas de saúde, mas porque deve ter percebido que o governo do golpe não tem agenda internacional substantiva. Ninguém quer muita conversa com golpistas que substituíram uma presidenta honesta pela “turma da sangria” entalada em denúncias de corrupção. O fato concreto é que o golpe isolou o Brasil. O único grande fiador internacional do golpe, os EUA, agora tem uma administração hostil às ideias de seus novos chanceleres. Como agravante, é óbvio que Trump não deve ter gostado nada das críticas que Serra e Nunes fizeram a sua candidatura.

 

Serra, com sua ignorância em política externa e seu comportamento belicoso, apenas agravou e precipitou o inevitável fracasso. O mesmo acontecerá com Aloysio Nunes. De novo, é claramente o “homem errado no lugar errado”. Dado a arroubos de cólera e com desconhecimento das sutilizas da linguagem diplomática, o senador ainda tem como agravante o fato de ser acusado de corrupção. Não é bom para a imagem do Brasil.

 

Mas a questão de fundo não é pessoal. É política. Nunes fracassará porque já disse que insistirá na política externa implantada por Serra. Insistirá no erro.

 

Na atual conjuntura nacional e internacional, qualquer chanceler brasileiro que servisse ao golpe fracassaria. Mesmo que conseguisse ressuscitar o Barão do Rio Branco, o governo anacrônico e golpista de Temer não conseguiria desenvolver uma agenda internacional substantiva e exitosa.

 

O problema, além da política externa sem rumo, é o governo sem legitimidade, que não passou pelo crivo democrático.

 

O próprio Barão do Rio Branco, ao assumir o Itamaraty, em 1902, disse:

 

Toda a minha força, toda a energia e atividade que pude desenvolver nas minhas últimas missões resultaram, não só da minha convicção do nosso bom direito, mas principalmente da circunstância de que eu me sentia apoiado por todo o povo brasileiro, inteiramente identificado com ele.

 

Ora, esse governo de usurpadores não tem apoio do seu povo, assim como não tem legitimidade alguma no plano mundial.

 

Ainda que redivivo, é provável que o Barão não aceitasse servir a um governo sem apoio do povo, incapaz de gerar uma política externa consistente e com legitimidade. Só capaz de repetir tragédias como farsas.

 

Para um governo como o de Temer, Serra e Nunes estão de bom tamanho.

 

 

https://www.alainet.org/de/node/184032
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