VI CLOC-VC: Para garantir o direito à alimentação
- Análisis
Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 502: Agricultura Campesina para la Soberanía Alimentaria 19/03/2015 |
Um dos ganhos do Ano Internacional da Agricultura Familiar proporcionado pela ONU em 2014, o qual teve como pano de fundo a crise alimentária, foi o de haver contribuído de alguma forma a visibilizar o debate entre a agricultura campesina e o agronegócio, que se mantinha oculta pela simbiose estabelecida entre este e o poder midiático.
No âmbito oficial, por assim dizer, o diretor geral da FAO, José Graziano da Silva, em seu discurso de abertura da 24ª sessão do Comitê de Agricultura (COAG) em Roma, declarou: “Os responsáveis políticos devem apoiar uma ampla gama de enfoques para reformar os sistemas alimentários mundiais, tornando-os mais saudáveis e sustentáveis, e reconhecer que 'não podemos confiar de imediato em um modelo intensivo para aumentar a produção e que as soluções do passado revelaram seus limites”... (e) solicitando uma “mudança de paradigma”, afirmou que os principais desafios atuais são reduzir o uso de insumos agrícolas, especialmente a água e os produtos químicos, com o objetivo de conseguir um tipo de agricultura, silvicultura e pesca mais sustentáveis e produtivas a longo prazo”.[1].
Neste contexto ocorrerá o VI Congresso de Coordenação Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC) – Via Campesina, de 10 a 17 de abril próximo, em Buenos Aires, com a participação de delegações de mais de 80 entidades de 18 países da América Latina e Caribe, no qual a disputa com o agronegócio será um dos temas centrais. A programação ainda inclui a V Assembleia Continental de Mulheres e a IV Assembleia da Juventude[2].
Dois modelos
O agronegócio (agrobusiness) é o reflexo das mudanças estruturais na produção agrícola da nova fase do capitalismo, homogeneizada pelo capital financeiro e pelas empresas transnacionais, que surge nos anos 80 do século passado.
Segundo João Pedro Stedile, dirigente do MST do Brasil, este modelo “se caracteriza sucintamente por: organização da produção agrícola na forma de monocultivos (um só produto) em escalas de áreas cada vez maiores; uso intensivo de máquinas agrícolas, expulsando a mão de obra do campo; a prática de uma agricultura sem agricultores; a utilização intensiva de venenos agrícolas, os agrotóxicos, que destroem a fertilidade natural do solo e seus micro-organismos, contaminam as águas na camada freática e inclusive a atmosfera ao adotar os desfoliantes e secantes que se evaporam na atmosfera e retornam com as chuvas. E sobretudo contaminam os alimentos produzidos, com consequências gravíssimas para a saúde da população. Usam cada vez mais sementes transgênicas, padronizadas, e agridem o meio ambiente com suas técnicas que buscam apenas a maior taxa de lucro em menor tempo”[3].
Frente a este modelo de agronegócio – socialmente injusto, economicamente inviável, insustentável para o meio ambiente e para toda a biodiversidade, e uma produção mercantil de alimentos com graves consequências para a saúde da população –, as organizações do campo articuladas na Coordenação Latino-americana do Campo (CLOC- Via Campesina) desenvolveram o conceito de Soberania Alimentária, partindo do princípio de que os alimentos não podem ser considerados uma mercadoria, pois a alimentação é um direito à sobrevivência da humanidade, e que por isso mesmo, em todos os lugares do mundo, cada povo tem o direito e o dever de produzir seus próprios alimentos.
Neste sentido, o documento preparatório[4] aponta: “Realizaremos nosso VI Congresso avançando na elaboração política da nossa proposta de uma nova sociedade, na qual a Soberania Alimentária sustentada pela concretização de Reformas Agrárias Integrais e Populares nos devolva a alegria e a convicção soberana de continuar trabalhando e cuidando da Mãe Terra para produzir os alimentos que nossos povos exigem e que a humanidade necessita para garantir seu desenvolvimento”. E em seguida define: “A questão da alimentação é um tema estratégico para a autonomia de um povo e para a Soberania da Nação. Assim, vemos que a Agricultura Campesina e Indígena cumprem um papel fundamental em qualquer país que vislumbre ser soberano”.
A agricultura campesina, assinala o texto, “é uma maneira de ser, de viver e de produzir no campo, baseada no resgate de tradições, costumes e culturas dos Povos Originários. O campesinato e os povos indígenas vivem em uma constante luta pela autonomia produtiva, através da diversificação da produção e da utilização de subprodutos de uma produção para a outra, em busca do equilíbrio ecológico, através de uma forte relação com a natureza, o auto-abastecimento e o abastecimento local e regional de alimentos saudáveis, constituindo-se no elemento básico para a promoção da soberania alimentária”.
E para confirmar que a agricultura campesina não é menos produtiva que o agronegócio e que o supera em razão de fatores sociais, culturais e ecológicos que satisfaz, o documento destaca: “Os campesinos e indígenas acessam apenas 24,7% das terras e territórios, são responsáveis por mais de 70% da produção de alimentos do mundo. Grandes quantidades desses alimentos são comprados a preços baixos pelas grandes transnacionais e enviados para longe das áreas onde foram produzidos ou se destinam a outros fins que não a alimentação, fato que leva a uma distribuição não equitativa dos mesmos, gerando fome e miséria nos setores e países mais pobres do mundo. A terra e o território são as bases fundamentais para a Agricultura Campesina e Indígena e para a soberania alimentária; ter acesso a ela e explorá-la racional e adequadamente é vital para o desenvolvimento humano equitativo”.
Conexão global: salvar o planeta
Como integrante da Via Campesina, uma delegação da CLOC participou do Encontro Mundial de Movimentos Populares (Roma-Vaticano, 27 a 29 de outubro de 2014), no qual as organizações do campo em diálogo com o Papa Francisco salientaram a gravidade da destruição ambiental, “por uma ínfima minoria, que com um modelo de produção e consumo que prioriza o lucro antes da vida, está devastando o planeta e as formas de vida e culturas que o mantém. As alterações climáticas produzidas por este modelo e essa minoria estão ameaçando a existência da Terra e de todos os seres vivos, incluídos os humanos”[5]. E convocaram para os seguintes compromissos:
- A defesa da permanência dos povos do campo em seus territórios e da agricultura camponesa e outras formas de produção dos povos que são base de nossa alimentação
- Um chamado para determos os graves impactos sociais e ambientais da mineração, o desmatamento e outras indústrias contaminantes, e advogarmos pelo controle delas.
- Um repúdio claro aos organismos e cultivos transgênicos e seus efeitos. ...os transgênicos são um perigo grave e suas promessas de maior produtividade e de terminar com a fome não tem base econômica, científica, tampouco biológica.
- Realizar um pronunciamento contra o patenteamento e manipulação de todos os seres vivos.
- Repudiar a privatização da água, da terra, das sementes e dos recursos naturais.
- Repudiar as falsas “soluções” diante das Mudanças Climáticas, assim como a energia nuclear, as mega-barragens, a geoengenharia e aos mercados de Carbono.
Agroecologia
Em seu VI Congresso Continental, a CLOC-VC se propõe a avançar na construção de um projeto político popular e na geração de propostas para políticas públicas. Nesse sentido, no documento preparatório realça, como um de seus desafios, que o programa “deve defender uma nova matriz de produção de recursos agrícolas, agora baseada na agroecologia, como uma forma concreta de enfrentar a forma capitalista de espoliar a natureza. A agroecologia é mais que um conjunto de técnicas alternativas para produzir no campo, é um modelo, um instrumento necessário para derrotar o modelo capitalista, que somente consegue produzir fazendo uso de venenos, destruindo a natureza”.
Sob esta perspectiva, “a Agroecologia e a Transição Agroecológica como uma nova base técnica e científica para a produção de alimentos, fibras e biomassa, em quantidade e qualidade suficientes para o abastecimento nacional e para as exportações, preservando e conservando a base de recursos naturais existentes nos biomas e ecossistemas, constituindo condições para a transição através de conhecimentos técnicos e uma nova rota para os insumos, com estruturas industriais locais e regionais para produzi-los e distribuí-los”.
Além disso, destaca que as sementes crioulas, “patrimônio dos povos a serviço da humanidade, são determinantes a qualidade, a diversidade e quantidade de alimento produzidos, portanto estão vinculados diretamente à Soberania Alimentária. As sementes determinam o modelo produtivo adotado. As sementes nativas estão adaptadas ao solo, ao clima de sua região, portanto são determinantes no enfrentamento do modelo agroquímico, portanto fundamentais para o enfrentamento às multinacionais”. Enquanto isso, “o uso de sementes transgênicas aumenta a utilização de agrotóxicos e insumos químicos, aumentando o desequilíbrio ambiental e criando um ciclo no qual cada vez se usa mais venenos e insumos químicos, gerando mais desequilíbrio e, dessa forma, a necessidade de utilizar mais insumos químicos e venenos”.
Políticas públicas
Para fortalecer a agricultura campesina e indígena e a soberania alimentária, a CLOC-VC reconhece que é necessário lutar por políticas públicas, tais como:
a) Reforma Agrária Popular e Integral. Distribuição de terras, juntamente com políticas de fortalecimento do setor produtivo. Limite do tamanho das propriedades; proibição da venda de terras para estrangeiros, etc. Expropriação de terras com exploração de trabalho escravo ou situação análoga a esta.
b) Política de stocks (estoques) reguladores. O Estado compra a produção no período de safra-colheita, armazena-a e a coloca no mercado no período entre colheitas.
c) Política de preços mínimos. Garante um preço mínimo que cubra os custos de produção e uma margem de renda para as famílias campesinas e limita os preços pagos pelos trabalhadores urbanos.
d) Assistência técnica. Orientada para os sistemas campesinos de produção, incentivando a produção de alimentos, com equipes multidisciplinares, de forma gratuita e capaz de atender a todas as famílias campesinas.
e) Créditos subsidiados para a produção de alimentos. Garante que as famílias campesinas produzam alimentos, obtenham renda e possam colocar os alimentos no mercado a preços acessíveis para os trabalhadores urbanos.
f) Direitos dos agricultores. Reconhecimento pelos serviços ambientais prestados, proteção ao conhecimento tradicional, redistribuição dos benefícios, participação nas decisões sobre a conservação e o uso sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação.
g) Legislação. Legislação específica para a produção, industrialização e comercialização da produção campesina, como forma de incentivo para a produção de alimentos.
h) Educação campesina. Orientada para a realidade local, contextualizada, que prepare a juventude campesina para atuar no campo, com orgulho de ser campesina.
i) Mercados institucionais. Que os governos comprem alimentos para os programas de alimentação escolar, hospitais, asilos e para o sistema carcerário diretamente dos camponeses e de suas organizações.
j) Nova circulação de insumos. Reconhecer, apoiar a estrutura produtiva e organizar a logística de distribuição de insumos naturais, que no agridam o meio ambiente.
k) Programa de transição agroecológica. Reconhece e apoia processos, com uma ampliação gradual de incentivos de acordo com o progresso implementado pelas famílias campesinas no processo de transição..
l) Apoio a processos de cooperação. Cooperativas, associações, empresas comunitárias, agroindústrias, mercados populares...
m) Reconhecimento do modo campesino de fazer agricultura. É o único capaz de dar respostas aos principais dilemas da humanidade:
- Crise alimentária.
- Crise energética.
- Crise ambiental.
Estas e outras medidas podem resolver o problema da crise de alimentos, diminuir a pressão nas grandes cidades e garantir condições de vida digna para as famílias trabalhadoras do campo e das cidades. Com estas políticas públicas e esta lógica de produção campesina poderemos alcançar a Soberania Alimentar.
Tradução: Daniela Pericolo Sgiers - (Coletivo Chasqui)
[1] Comunicado à imprensa FAO, 30 de setembro de 2014.
[2] A CLOC foi forjada no calor da campanha continental “500 Anos de Resistência Indígena, Negra e Popular”, para constituir-se formalmente no congresso realizado em Lima, Peru, de 21 a 25 de fevereiro de 1994.
[3] “Las tendencias del capital sobre la agricultura”, América Latina en Movimiento nº 459, ALAI, outubro de 2010.
[4] Rumbo al VI Congreso Continental. Secretaría Operativa CLOC-VC - Argentina, Abril 2015.
[5] Mensagens lidas para o Papa, EMMP, http://alainet.org/active/78544&lang=es
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