Governo Kirchner quer pagar a dívida externa. Mais uma vez

26/02/2010
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Cristina Kirchner briga com conservadores e desagrada a esquerda com medida que usa fundos estrangeiros para pagar vencimentos da dívida

Neste ano, a Argentina comemora 200 anos de sua independência. A presidente do país, Cristina Fernández de Kirchner, resolveu comemorar de uma maneira que demonstra muito o perfil do seu governo na área econômica: pagando a dívida externa. 

No final do ano passado, o governo federal anunciou a criação do Fundo do Bicentenário, formado com parte de reservas que o Banco Central da República Argentina (BCRA) possui em moedas estrangeiras. Dos 47 bilhões de dólares acumulados hoje pela instituição, seriam usados 6,6 bilhões para pagar vencimentos da dívida.

A medida foi rechaçada pela oposição conservadora, e também pela esquerda. Enquanto os primeiros – representados pelos partidos União Cívica Radical (UCR), Proposta Republicana (PRO) e Coalizão Cívica – pregam medidas ainda mais ortodoxas, sugerindo que os vencimentos sejam pagos com novos endividamentos e apertos fiscais, os segundos questionam a legalidade da dívida externa argentina e exigem que seja realizada uma auditoria. 

Contra essa proposta, conservadores e oficialistas se uniram rapidamente: ambos rejeitam qualquer possibilidade de seguir o exemplo equatoriano. De acordo com o historiador argentino Alejandro Olmos Gaona, há documentos, testemunhos e declarações de peritos do BCRA que afirmam que 95% da dívida externa é ilegal, ou seja, contraída por meio de fraudes. “Por que temos que pagar uma fraude?”, questiona.


Crise política

O governo de Cristina Kirchner, desde as desavenças com o setor agroexportador, em 2008, tem tido dificuldade para se fortalecer. Hoje, a oposição está até mesmo dentro do governo, na própria vice-presidência. De viagem marcada para a China e Bolívia, em janeiro, a presidente decidiu adiar os compromissos para não deixar Júlio Cobos em seu lugar justamente durante a crise política que se instaurou após o anúncio do uso dos fundos. “Essa viagem me obrigaria a ficar dez dias fora, muito tempo, levando em conta que o vice-presidente não cumpre seu papel”, disse Cristina.

A crise se iniciou após o presidente do BCRA – que lá possui autonomia –, Martín Redrado, se negar a resgatar a quantia exigida para compor o Fundo Bicentenário. O Executivo, então, pediu sua renúncia. Redrado se negou a sair do cargo, e o governo, por decreto, o retirou da presidência da instituição, no dia 8 de janeiro. 

Na Argentina, o presidente do BCRA é indicado e destituído pelo Congresso. Com esse argumento, e invocando também a autonomia da instituição, a oposição de direita bateu o pé e a Justiça cancelou a medida de Cristina. Outra determinação judicial afastou Redrado, deixando sua permanência a ser decidida pelo Congresso – em recesso até março. 

Dias depois, o Banco Central dos Estados Unidos embargou fundos argentinos depositados ali. A bolsa argentina despencou, o dólar disparou e o pânico econômico ameaçou se instalar no país que ainda tem vivo na memória a crise de 2001. Apesar disso, a oposição se viu obrigada a recuar. Pesquisas apontam que 60% da população apoia a criação do Fundo do Bicentenário. Redrado acabou renunciando no fim de janeiro.


Dívida ilegal

Para a esquerda, o debate público gerado por conta da crise política, que ocupou diariamente espaço na imprensa corporativa do país, tem sido a oportunidade para questionar a legalidade da dívida argentina. A justificativa do governo federal diante da proposta de auditoria foi afirmar que o passivo contraído pelo país foi legalizado pelo primeiro presidente argentino que assumiu após o fim da última ditadura (1976-1983), Raúl Alfonsín. 

Para Alejandro Olmos, o argumento é insustentável. “É um princípio elementar da ordem jurídica que os atos ilícitos não podem gerar consequências lícitas”, defende. O historiador ainda afirma que nunca foi do interesse do governo Kirchner – seja com Néstor ou Cristina – auditar a dívida. 

“Em nenhum momento houve o menor interesse em auditar a dívida, só de seguir pagando. Eu enviei uma carta à presidente no dia 14 de janeiro. Há três dias, ela foi respondida, resgatando o grande trabalho de investigação do meu pai, mas afirmando que devemos pagar a dívida, pois ela foi legitimada”, conta Olmos, para quem dívida externa é também assunto de família. Seu pai – Alejandro Olmos –, falecido em 2000, foi pioneiro nos estudos da contração da dívida argentina e entrou na Justiça, em 1982, para provar sua ilegalidade, exigindo a punição de funcionários da ditadura militar. Em 2000, pouco após sua morte, um juiz declarou prescrita a ação, mas reconheceu a validade dos argumentos de Olmos, que servem de base até hoje para os movimentos que lutam pela auditoria da dívida. 


Ditadura militar

“Esse tema me acompanha há anos e o associo aos 30 mil mortos e desaparecidos da ditadura militar, ao meu filho e ao povo que paga as consequências de uma dívida que não contraiu”. As palavras de Nora Cortiñas, da Associação Mães da Praça de Maio – Linha Fundadora, revela o que boa parte do povo argentino não sabe: o processo brutal de endividamento a que o país foi submetido durante a última ditadura militar, origem do problema no país. 

“Quando começou o regime, a dívida era de 8 bilhões de dólares, que correspondia a empréstimos reais. Ao seu término, o passivo era de 46 bilhões”, explica Gaona. Ele acrescenta que o endividamento era parte de uma política econômica que tinha como base o aumento das importações, enfraquecimento da indústria nacional e endividamento de empresas públicas – sem que essas precisassem de fato do dinheiro, desviado para o tesouro nacional. 

Desde então, a bola de neve só aumentou, incrementado pelos anos de neoliberalismo selvagem na década de 1990. Hoje, o passivo total é de 145 bilhões de dólares (50% do PIB), boa parte dele  formado por dívidas contraídas por empresas privadas e transferidas ao Estado por meio de fraudes. O Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel tem encabeçado também a campanha pela auditoria. “Quanto mais pagamos, mais devemos e menos temos. É uma transferência de capitais por meio de uma dívida ilegal que significa fome e marginalidade para o povo”, afirma. 
(Com informações do Infosur – www.infosur.info)
 
- Dafne Melo da Redação Brasil de Fato
https://www.alainet.org/de/node/139688
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