Emaús, itinerários
17/06/2004
- Opinión
A única liberdade impossível de se privar um prisioneiro é
de sonhar.
Talvez essa seja a característica mais humana de nossa
espécie. Mais que a linguagem, pois os animais também têm a
sua, comunicam-se entre si. O que nos soa como um belo
trinado de pássaros pode significar, no mundo das aves, o
aviso de que não há sinal de chuva no alvorecer.
O sonho ultrapassa os nossos limites físicos. E mesmo a
nossa consciência desperta, pois sonhamos dormindo, sem
nenhum controle sobre as fantasias que povoam a nossa
mente. Numa prisão, sonhar é condição de saúde mental.
Mesmo os presos condenados a décadas de privação da
liberdade física sonham intensamente com o que haverão de
fazer lá fora, uma vez abandonadas as grades. Sonham
inclusive que estarão livres muito antes de cumprirem a
sentença a que foram condenados.
Encarcerados na penitenciária de Presidente Venceslau -
nossa última etapa após quatro anos de via crucis por
várias cadeias -, Fernando de Brito, Ivo Lesbaupin e eu
mantínhamos corespondência com teólogos e pastoralistas,
como Carlos Mesters, os irmãos Boff, JB Libanio, Orestes
Stragliotto, Antonio Cechin e outros. Percebíamos que uma
nova teologia estava sendo gestada graças à expansão das
CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Gustavo Gutiérrez
havia lançado, em 1971, sua "Teologia da Libertação". Ali
em Presidente Venceslau, entre 1972 e 73, tornava-se claro
para nós que era preciso dar consistência orgânica a esse
grupo de intelectuais da fé que assessorava as CEBs. Mais
do que isso: não víamos futuro para uma teologia que se
propunha libertária fora de sua articulação com o marxismo.
Assim como são Tomás de Aquino erigiu a sua catedral
teológica sobre os pilares do pensamento aristotélico,
parecia-nos que Marx era a base sobre a qual a nova
teologia latino-americana deveria buscar suas mediações
racionais, tanto para a correta "análise da realidade",
quanto para romper a epistemologia analítica e abraçar a
dialética, dando o salto para desbranquear, deseuropeizar a
teologia, recriando as suas categorias e redefinindo os
seus conceitos a partir dos mundos indígena e negro, das
mulheres e dos excluídos.
Nasceu, assim, a proposta de se criar o Grupo de Emaús.
A conjuntura da Igreja católica no Brasil diferia muito de
outras Igrejas do Continente, em meados dos anos 70. Ao
contrário da Argentina, do Chile, da Colômbia e de outros
países, não tivemos aqui a ruptura entre bispos e
sacerdotes "para o socialismo" ou coisa que o valha. Aqui,
a contradição não se deu na horizontal - hierarquia acima,
padres progressistas abaixo -, mas na vertical: bispos e
cardeais tensionados entre o conservadorismo e o
progressismo. Sem, contudo, ocorrer rupturas. Nem tivemos
casos de clérigos empunhando armas, embora nós,
dominicanos, tivéssemos nos organizado para apoiar a luta
armada comandada por Carlos Marighella.
Em nossas primeiras reuniões em Petrópolis, nos fundos do
hospital Santa Catarina, havia um dado que impedia o grupo
de ceder ao intelectualismo teórico, envolto em debates
bizantinos: a base social construída pelas CEBs.
Era um fato inusitado. A Igreja católica popularizava-se
através das CEBs, rearticulava o movimento popular no
momento mesmo em que a repressão da ditadura militar
condenava a luta armada ao fracasso. E aquele movimento
eclesial, inovador, suscitava, na prática, uma nova
eclesiologia, bem como uma nova cristologia - matéria-prima
à reflexão teológica sistematizada na teologia da
libertação. Prática e teoria andavam tão interligadas, que
cada novo livro editado disseminava-se pelo país como pão
quente agarrado por um bando de famintosŠ Emaús funcionou
como uma central de produção, tanto do novo pensamento
teológico e de novas práticas pastorais, quanto de
ferramentas capazes de alavancar o processo de relação
entre fé e política. Dali surgiram os intereclesiais, o
CEBI, o CESEP, o Curso do Verão, o Curso dos Bispos, o
Movimento Fé e Política etc.
Graças à reflexão de Emaús, graves desvios, ocorridos em
outros países, foram evitados no Brasil. Não absolutizamos
a política, nem a espiritualidade pretensamente apolítica.
Não confessionalizamos partidos, nem permitimos que as CEBs
fossem cooptadas pelo PT. Não sacralizamos o marxismo, nem
ideologizamos a experiência de fé.
Ao contrário, desenvolvemos a ótica acertada de como se dá
a relação de autonomia e alteridade, distinção e
complementaridade, entre Igreja e partido, fé e ideologia,
movimento pastoral e movimento social. E jamais cedemos à
tentação de romper com a instituição eclesiástica, ainda
que alguns dos participantes de Emaús, como Leonardo Boff,
tenha sofrido sanções muito duras. Aprendemos que a
mediação Igreja e Estado dá-se pela causa popular. Essa é a
pedra angular da relacão entre as duas instâncias
institucionais.
Emaús foi de suma importância em meu trabalho junto aos
governos socialistas e as Igrejas ali situadas, entre 1979
e 1992. Sem o respaldo dessa comunidade fraterna não teria
sido possível ajudar o mundo comunista a abdicar - ainda
que tardiamente, com exceção de Cuba - de seus preconceitos
anti-religiosos e de suas falácias, tipo "ateísmo
científico", que transpunha para a pretensa racionalidade
marxista uma convicção tipicamente religiosa. Se hoje a
Igreja católica no Brasil é mundialmente respeitada por sua
opção pelos pobres e ocupa, entre as demais instituições do
país, o 1º lugar entre as mais confiáveis pela opinião
pública, isso se deve também ao trabalho do Grupo de Emaús,
que ofereceu fundamentos às CEBs, às pastorais sociais, aos
bispos progressistas, revolucionando, graças à contribuição
de Paulo Freire, a leitura da Bíblia, "derrubada de seus
tronos" e entregue àqueles que têm "as mãos vazias".
No relato de Lucas, os discípulos de Emaús reconhecem a
presença de Jesus na hora da partilha do pão. Outra coisa
não temos feito, ao longo desses 30 abençoados anos, senão
partilhar o pão da Palavra, da política, da vida
espiritual, da amizade e, também, da dor. Por isso, a face
de Jesus é cada vez mais visível entre nós. E amorosa a sua
presença em nossos corações.
* Frei Betto é escritor, autor de "Gosto de uva Escritos
selecionados" (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/110107?language=es
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