O churrasco

25/04/2002
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Nada mais atribulado do que um churrasco. Você já levanta excitado, disposto a um café da manhã frugal, para deixar o apetite pronto às maminhas, picanhas, lingüiças, asas de frango e corações de galinha. Na hora combinada, você despeja a família no local da comilança. Então tem início a saga carnívora: antes de indagar como vai você, o anfitrião gaba-se de que comprou as melhores carnes, possui a mais bem feita churrasqueira e sabe grelhar como ninguém. Você acredita, até aproximar-se da churrasqueira. Então, percebe que o anfitrião ainda nem abriu o saco de carvão. As carnes estão ali do lado, revestidas de sal grosso, expostas às moscas. Pouco depois, inicia-se o ritual. Após muito custo, o carvão é aceso, e a fumaceira envolve as carnes e entope o nariz dos comensais. O anfitrião decide assar primeiro lingüiças, corações e asas de frango, como se quisesse encher a barriga de todos com tais acepipes e guardar para si as carnes nobres. Vai dando aquele vazio na barriga, as crianças estão impacientes, já comeram vários sacos de batata frita, e nada de churrasco. O mais novo chora de fome agarrado às suas pernas e rejeita o pão com pasta de atum que você lhe oferece. Ele quer sustança, carne, que ainda não está pronta. Sua mulher, que não come carne vermelha, fuzila-o com aquele olhar de cadê a salada, o peixe, os camarões que você disse que ele faria? Você já bebeu umas tantas caipirinhas, entra na cerveja, e começa a ficar impaciente. O anfitrião, aflito com tantos convidados a se aproximar da churrasqueira, para conferir o andar da carruagem, decide servir as lingüiças, as asas e os corações de galinha. Sem alternativa, você come, percebe que não estão no ponto, queimaram um pouco por fora, mas não há como cuspir; o jeito é engolir. Agora, as carnes nobres começam a suar sobre a trempe. Você fica ali do lado, copo de cerveja na mão, como se o seu olhar vigilante pudesse apressar a assadura. O álcool sobe-lhe à cabeça e, para segurá-la, você enche o prato de arroz e farofa, e faz uma boquinha enquanto aguarda o churrasco. Finalmente, maminhas e picanhas estão fatiadas e você, famélico, corre para a fila encabeçada por crianças e adolescentes. Quando chega a sua vez, servem-lhe um pedaço bem menor do que o esperado, e você percebe que a carne está esturricada, sem sabor. Ainda assim, você se empanturra de raiva; raiva de estar ali, de comer tão tarde, de ter no prato uma carne mal cortada e fora do ponto que você gosta. E o pior é que o anfitrião, feliz com a própria arte, vem perguntar o que você está achando e, com aqueles olhos sonolentos de quem sonha com uma boa sesta, você responde que está ótimo, nunca comeu carne tão saborosa, embrulhando o estômago com a própria mentira. Passadas umas semanas, você esquece de tudo aquilo e, de novo, aceita outro convite para comparecer a um churrasco, onde prometem oferecer-lhe as melhores carnes. Frei Betto é escritor, autor de "Comer como um frade divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca" (Francisco Alves), entre outros livros.
https://www.alainet.org/de/node/105814
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