A fome, segundo Ziegler
19/03/2002
- Opinión
A fome não foi o único motivo de indignação por parte do
representante das Nações Unidas, Jean Ziegler, na sua visita de 18
dias ao Brasil. Ele se indignou igualmente pela contraposição entre
uma elite de governo altamente preparada intelectualmente e a falta
de disposição para colocar esses conhecimentos a serviço de mudar a
indignante situação em que deixam o país. Um governo que, estivesse
vivo Josué de Castro, o teria insultado e tentaria desmoralizado como
ignorante do que passa no Brasil, da mesma forma que tentou fazer com
Jean Ziegler.
Ziegler conhece muito bem o Brasil e a fome no mundo. De seu livro "A
fome no mundo explicada a meu filho", ele nos fala dela.
A FAO avalia em seu último relatório em mais de trinta milhões o
número de pessoas mortas de fome em 1999 e, para o mesmo período, em
mais de oitocentos e vinte e oito milhões os seres atacados pela
desnutrição grave e permanente.
Cento e quarenta e seis milhões de cegos vivem nos países da África,
da Ásia e da América Latina. Todo ano sete milhões de pessoas,
normalmente crianças, perdem a vista, na maioria das vezes por falta
de uma alimentação suficiente ou como conseqüência de doençcas
vinculadas ao subdesenvolvimento.
A FAO elaborou, há mais de quinze anos, um relatório em que observava
que o mundo, no estado atual das forças produtivas agrícolas, poderia
alimentar sem problemas a mais de 12 bilhões de habitantes, isto é,
ao dobro da população mundial atualmente. Alimentar quer dizer dar a
cada homem, mulher e criança uma ração equivalente a duas mil e
quatrocentas calorias diárias, dado que as necessidades alimentares
variam segundo os indivíduos em função do trabalho que realizam e das
zonas climáticas de onde provêm.
"Em Crato, no Ceará, ao lado do cemitério católico oficial eu vi um
vasto campo semeado de pequenas colinas: "crianças anônimas" m me
disse Cícero, meu amigo, camponês que me recebeu. Crianças anônimas,
mortas nos primeiros dias ou semanas de sua chegada a este mundo, de
fome, de rubéola, de diarréia ou de desidratação. Seus pais são
pobres demais para registra-los na prefeitura, mesmo se legalmente
deveriam tê-lo feito. A prefeitura cobra um real o dois pelo
registro, então o pai, a mãe ou um irmão maior que sobreviveu pegam o
corpinho inerte durante a noite, fazem um buraco no "campo das
crianças anônimas" e introduzem o recém nascido da família.
A cada minuto nascem duzentas e cinqüenta crianças no mundo, cento e
noventa e sete delas em um dos cento e vinte e dois países do
Terceiro Mundo. Muitos deles chegam a uma dessas zonas de túmulos
anônimos pouco depois de seu nascimento.
Atualmente se utiliza um quarto da colheita mundial de cereais para
alimentar o gado dos países ricos. As doenças cardiovasculares
devidas à super-alimentação provocam entre nós, na Europa, cada vez
mais vítimas, enquanto que em todo o Terceiro Mundo os homens morrem
de desnutrição.
No Médio Oeste norte-americano e na Califórnia os bois são
alimentados com cereais em imensos recintos climatizados que eles
denominam fedd lots, pr meio de um sistema eletrônico de distribuição
pautada do alimento. A quantidade de milho consumido anualmente pela
metade dos fedd lots californianas é mais importante que o conjunto
das necessidades de um país como Zâmbia, onde este cereal é um
alimento essencial e, em compensação, está devastado por uma
subalimentação crônica.
Não conheço nenhum colégio em que o tema da fome, que a cada dia mata
a mais gente do que todas as guerras juntas do planeta, figure em seu
programa. Não existe nenhum tipo de curso em que o problema da fome
seja analisado, seja discutido, em que se examinem suas raízes e os
meios de acabar com ela.
A FAO está mais ou menos obrigada a mentir sobre as perspectivas de
futuro, pois se não o fizesse os países ricos deixariam de mandar par
a Roma as consideráveis somas de dinheiro que manda, porque deixariam
de considera-las úteis. É uma mentira piedosa. E relatório de 1974
terminava com esta promessa: "Em seis anos não haverá homem, mulher
ou criança na terra que tenha que ir para a cama com a barriga
vazia." E o Forum Mundial sobre Alimentos de 1996, em Roma, concluía
assim: "No ano 2015 conseguiremos que o número de pessoas que sofrem
fome no mundo diminua pela metade". A promessa de 1974 deu no seu
contrário: o número de necessitados aumentou. A de 1996 parece que
também será falsa.
https://www.alainet.org/de/node/105725
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