A globalizacao das catastrofes
30/11/2001
- Opinión
O "pensamento único" pretendia naturalizar a vida, obrigando os
homens a um itinerario necessario. Teria havido historia, já não
haveria mais, agora reinariam soberanas as leis da economia, sem os
constrangimentos da politica, dos direitos sociais, da moral, da
cultura.
No entanto, ao contrario do que desejaria, a globalizacao liberal, ao
estender as relacoes mercantis a todo o mundo, o que fez foi terminar
de desnaturalizar o mundo. Já nada deixa de ter o toque das relacoes
sociais vigentes – aquelas capitalistas, em sua versao extremada, a
neoliberal, em que tudo se compra e se vende, tudo tem preco, tudo e
mercadoria.
Nos seus momentos mais extremos, essa desnaturalizacao se revela mais
claramente, exatamente quando poderia expressar relacoes naturais.
Refiro-me ao que se costuma chamar de " catastrofes naturais", que
de " naturais" vao tendo cada vez menos, se e que lhes sobre algo de
natural.
Cuba sofreu recentemente a passagem do pior furacao de sua historia em
cem anos, o Michelle. Pelas medidas preventivas, pela infra-estutura
existente de protecao a populacao, pela acao do Estado cubano, tiveram
que contabilizar a queda de 25 mil casas, de 2.500 torres de
eletricidade, entre outros danos materiais, mas uma cifra muito
pequena – dado o tamanho do fenomeno – de 5 mortos.
Enquanto isso, na Argelia, chuvas violentissimas, praticamente ao
mesmo tempo que o fenomeno que afetou Cuba, provocaram cerca de mil
mortes. Pior: as chuvas foram noturnas, mas as catastrofes piores se
deram no dia seguinte, sem que a populacao estivesse avisada para não
mandar seus filhos a escola, para não sair de automovel e para se
resguardar. Quando o Estado finalmente se fez presente, foi sob a
forma de tropas para proteger os bens ainda intactos e não de pessoal
de ajuda direta a populacao, que teve que se virar sozinha.
A diferenca entre os dois e a natureza do sistema social. A Argelia,
depois de uma belissima revolucao anti-colonial e nacionalista,
liderada por Ben Bella, passou a ser governada por elites corruptas,
que deram um golpe e instalaram militares no poder, degenerando as
conqusitas da revolucao – reforma agraria, nacionalizacao do petroleo,
reforma urbana, soberania politica – ate fazer do pais o desastre
atual, em que se debate entre o terrorismo fundamentalista e o
terrorismo estatal.
Cuba realizou uma revolucao democratica e nacional, que desembocou,
atraves do seu antimperialismo radical, no socialismo. Instalou um
sistema social que privilegia as necessidades da massa de sua
populacao, a comecar pela habitacao, pela saude, pela educacao, pela
cultura, pelo lazer, ao lado de politicas de soberania politica e de
internacionalismo solidario. Seu humanismo se revela exatamente nos
momentos em que sua populacao precisa ser protegida de catastrofes
que, de origem natural, passam pelo crivo social do tipo de sociedade
que cada pais tem. Que salva vidas ou deixa as pessoas morrerem ou
apenas sobreviverem.
O mesmo carater natural e exibido pelos novos dados sobre a Aids no
mundo, uma doenca que se transformou rapida e radicalmente numa doenca
de pobres. Porque embora a ONU a caracterize como " a doenca mais
devastadora que a humanidade jamais conheceu", seu carater social e
evidente. Depois de um primeiro momento em que afetou de forma
praticamente indistinta a todos os setores sociais, rapidamente se
concentrou nas camadas mais pobres da populacao, conforme os remedios
foram sendo descobertos para circunscrever seus efeitos e as medidas
de educacao social foram se generalizando. A Aids se tornou doenca de
pobre, especialmente pelos custos do tratamento, mas tambem pela
educacao social mais accessivel aos setores com melhor instrucao.
Os dados são evidentes: em 2001, 3 milhoes e 400 mil novos infectados
apareceram apenas na Africa subsaariana, com 2 milhoes e 300 mil
mortos, enquanto na outra ponta, na America do Norte, por exemplo
houve 45 mil novos infectados e 20 mil mortos e na Europa ocidental 30
mil novos infectados e 6.800 mortos. Dos 5 milhoes de novos
infectados, 3 milhoes e 400 mil se deram na Africa subsaariana e dos 3
milhoes de mortos, 2 milhoes e 300 mil vieram dessa mesma regiao.
Globalizaram-se as catastrofes consideradas "naturais", que
passaram pelo crivo de classe, da insercao de cada pais e cada
continente na divisao internacional do trabalho, comandada pelas
grandes potenciais imperiais e pelas corporacoes com sede nesses
paises. Aquelas mesmas potencias e empresas que propagam a
"naturalidade" da globalizacao liberal, enquanto a impulsam e se
enriquecem com ela.
A humanidade já dispoe dos meios para se proteger desses males. Cuba
demonstra que um pais pode ser pobre, porem justo e proteger sua
populacao, conforme a natureza da sociedade. A humanidade produz
alimentos para 12 bilhoes de pessoas, isto e, o dobro da populacao
mundial, porem a fome continua a atingir e a matar dezenas de milhares
de pessoas – prioritariamente as mais frageis, as meninas e as idosas
– diariamente. Já se dispoe dos medicamentos para controlar a Aids,
mas sua apropriacao privada impede que a massa de suas vitimas possa
ter acesso a eles.
No novo seculo a contradicao entre a producao social dos bens e sua
apropriacao privada se torna a questao central para a humanidade. Um
sistema social baseado no lucro e na mercantilizacao e o inimigo
fundamental dos que lutam por um mundo solidario e humanista, em que
os homens tomem seu destino em suas proprias maos e construam um mundo
a sua imagem e semelhanca e não do dinheiro e do lucro.
https://www.alainet.org/de/node/105454?language=en
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